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Brasileira vivendo em Ruanda conta que nem tudo é “cor de rosa” no mundo das organizações na África

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Desmotivada a continuar trabalhando no meio corporativo, e “cansada de contar diariamente milhares de mortos por causa da Covid-19 no Brasil”, em novembro do ano passado Caroline Haddad resolveu se mudar para Ruanda, pequeno país do leste africano com uma população equivalente a da cidade de São Paulo.

Vinicius Assis, correspondente da RFI na África do Sul

Ela não veio fazer voluntariado, mas o objetivo era trabalhar com algo mais focado em questões sociais, em vez de continuar apenas “vendendo pasta de dente”, como ela disse durante a entrevista na casa compartilhada onde mora atualmente na capital, Kigali.

“Eu nunca tinha pisado em um país do continente (africano)”, destacou. Ela reconheceu que a imagem que tinha em mente era a do estereótipo associado ao genocídio contra os Tutsis, em 1994. “Ruanda, acho que é um ponto fora da curva no continente. Pegando especificamente Kigali, é uma cidade super organizada, limpa, arborizada. Não é aquele ‘mar de gente’ andando pela rua, que é o que você imagina em uma capital, principalmente em um país em desenvolvimento”, conta ao falar sobre o que mais a surpreendeu aqui.

Caroline nasceu em São Paulo. Cresceu em Araraquara, no interior, e voltou para a capital mais tarde, onde se formou em Comunicação com ênfase em Marketing. Também fez mestrado em Comunicação de Marcas, na França. O cansaço com o ambiente em que trabalhava a fez tomar uma decisão no fim de 2017: era hora de dar uma pausa. No ano seguinte começou a viajar, trabalhando remotamente com consultorias.

“Essa é a vantagem de não ter emprego fixo: eu poderia ficar quatro ou cinco meses viajando (e trabalhando)'', lembrou.

Descoberta do trabalho de Oranizações Internacionais

Assim foi entre 2018 e 2019. A ideia para os meses seguintes já era conhecer países do leste africano, mas veio a pandemia. Foi neste período que ela conversou, em São Paulo, com um brasileiro que morava em Kigali sobre o trabalho dele em uma organização internacional sem fins lucrativos que assiste pequenos agricultores ruandeses. Caroline trabalha nesta empresa atualmente. A experiência a tem feito refletir sobre este setor, que ela não conhecia.

“Trabalhar para uma organização que tem um propósito mais social eu acho que é diferenciador”, disse. Mas ela contou o que a surpreendeu e pode decepcionar algumas pessoas que também querem vir trabalhar com o foco no lado social no continente africano.

“Algumas questões acabam passando normalmente pela mesma estrutura que você passa trabalhando para uma grande empresa. Tem toda a coisa do corporativo, das relações interpessoais, da burocracia do escritório, principalmente se você trabalha em grandes organizações. Talvez a gente idealize muito, por entender que (o trabalho) é um propósito maior. A gente idealiza aquela estrutura e ela também acaba passando por questões que são sistemáticas no mundo que a gente vive”, esclareceu.

A brasileira destaca que essas grandes organizações vivem de financiamentos, principalmente, de grandes fundações bilionárias e na maioria das vezes beneficiam organizações internacionais em países africanos, em vez das locais. Boa parte dos recursos é usada para manter essas grandes estruturas funcionando. Ou seja: nem sempre a maior parte do orçamento é usada em benefício direto da população.

“Existe um fluxo grande de financiamento que vem, na teoria, para redistribuir riquezas, mas ele acaba voltando para organizações que são também internacionais, que têm a maior parte da liderança de pessoas estrangeiras morando em África”, lembra.

Choque de culturas

Caroline ainda fala do choque de pensamentos, ao enfatizar que, em vez de respeitar culturas locais, muitas vezes essas lideranças estrangeiras trazem um jeito de pensar e agir que é de fora e, mesmo assim, tentam adaptar isso à realidade local, o que nem sempre funciona.

“Eu não contava com isso. Acho que isso é uma questão a ser levada em conta (por quem quer vir para cá fazer o mesmo). Não sei se trabalhando em uma organização brasileira no Brasil eu teria este tipo de observação e crítica. Gera uma certa confusão. Estou aqui para um bem social, mas por outro lado beneficiando uma organização que é estrangeira e que lida com milhões, bilhões de dólares, e de que modo que isso é revertido para a população local”, desabafou.

Nem sempre ela vai às áreas rurais onde estão os pequenos agricultores, regiões com infraestruturas bem diferentes das que se vê na capital. É neste ambiente que ela se dedica mais às pesquisas, tem um contato direto com a população que mais precisa de ajuda para se desenvolver economicamente. “Quando converso com os agricultores acabo esquecendo um pouco o que está acontecendo no mundo dos escritórios”, diz. A maior parte das tarefas ela desenvolve remotamente, mas também já esteve em países como Tanzânia, Zâmbia e Quênia por conta do trabalho.

No dia da entrevista, a brasileira levou a reportagem para um tour gastronômico em Nyamirambo, uma popular região de Kigali onde vivem muitos muçulmanos. A capital ruandesa faz jus a fama de mais limpa do continente africano, embora os desafios urbanos existam aqui também.

A vida em Ruanda

Caroline se considera uma pessoa bem crítica e destaca a influência do autoritário governo de Ruanda no dia a dia da população. O país é comandado pelo mesmo homem há mais de 20 anos. O presidente Paul Kagame tem influência na política de Ruanda desde os anos 1990, quando houve o genocídio contra uma das três etnias do país. Fala-se em quase um milhão de mortos naquele sangrento ano de 1994. Este ainda é um assunto delicado para se tocar com quem não se conhece bem por aqui.

A pele bronzeada e os lisos cabelos escuros que fariam Caroline ser chamada de morena no Brasil a fazem ter um tratamento privilegiado, como uma branca estrangeira em Ruanda.

Ela ressalta que Kigali é uma cidade muito segura, o que para ela também tem a ver com este autoritarismo do governo. É comum ver policiais e até seguranças privados armados com fuzis nas ruas.

Apesar das críticas ao chamado terceiro setor, ela recomenda a experiência, mas com cautela. “Se a pessoa tem interesse em conhecer esse mundo do desenvolvimento internacional é uma experiência importante, inclusive para ter essa percepção mais de perto. Mas tem de vir com a consciência de que não é tudo lindo, ‘cor de rosa’, que existem questões mais complexas que passam por essa questão de, alguma forma, ainda se hierarquizar o que é ocidente, europeu, americano, e o que é ‘não ocidente’, o sul global. No caso, a África, mas pode ser a América do Sul. Então é preciso ter consciência de que isso ainda existe, esse predomínio do norte global sobre o sul global”, conta.

Ela considera a atual experiência “válida”, mas continua se fazendo perguntas como “a quem estou beneficiando com meu trabalho? A quem estou dedicando minha energia?”. A brasileira deixa transparecer que Ruanda não é onde pretende passar o resto da vida. Quer voltar ao Brasil um dia e acredita que esta experiência também a ajudará quando este momento chegar.

“A gente, sim, tem questões muito sérias no nosso país, mas a gente tem a clareza de onde a gente deveria ou poderia ir. E isso de alguma forma até me dá mais motivação talvez em voltar para o Brasil em algum momento e também saber qual o nosso papel, o que a gente pode fazer pelo país”, finalizou.

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Desmotivada a continuar trabalhando no meio corporativo, e “cansada de contar diariamente milhares de mortos por causa da Covid-19 no Brasil”, em novembro do ano passado Caroline Haddad resolveu se mudar para Ruanda, pequeno país do leste africano com uma população equivalente a da cidade de São Paulo.

Vinicius Assis, correspondente da RFI na África do Sul

Ela não veio fazer voluntariado, mas o objetivo era trabalhar com algo mais focado em questões sociais, em vez de continuar apenas “vendendo pasta de dente”, como ela disse durante a entrevista na casa compartilhada onde mora atualmente na capital, Kigali.

“Eu nunca tinha pisado em um país do continente (africano)”, destacou. Ela reconheceu que a imagem que tinha em mente era a do estereótipo associado ao genocídio contra os Tutsis, em 1994. “Ruanda, acho que é um ponto fora da curva no continente. Pegando especificamente Kigali, é uma cidade super organizada, limpa, arborizada. Não é aquele ‘mar de gente’ andando pela rua, que é o que você imagina em uma capital, principalmente em um país em desenvolvimento”, conta ao falar sobre o que mais a surpreendeu aqui.

Caroline nasceu em São Paulo. Cresceu em Araraquara, no interior, e voltou para a capital mais tarde, onde se formou em Comunicação com ênfase em Marketing. Também fez mestrado em Comunicação de Marcas, na França. O cansaço com o ambiente em que trabalhava a fez tomar uma decisão no fim de 2017: era hora de dar uma pausa. No ano seguinte começou a viajar, trabalhando remotamente com consultorias.

“Essa é a vantagem de não ter emprego fixo: eu poderia ficar quatro ou cinco meses viajando (e trabalhando)'', lembrou.

Descoberta do trabalho de Oranizações Internacionais

Assim foi entre 2018 e 2019. A ideia para os meses seguintes já era conhecer países do leste africano, mas veio a pandemia. Foi neste período que ela conversou, em São Paulo, com um brasileiro que morava em Kigali sobre o trabalho dele em uma organização internacional sem fins lucrativos que assiste pequenos agricultores ruandeses. Caroline trabalha nesta empresa atualmente. A experiência a tem feito refletir sobre este setor, que ela não conhecia.

“Trabalhar para uma organização que tem um propósito mais social eu acho que é diferenciador”, disse. Mas ela contou o que a surpreendeu e pode decepcionar algumas pessoas que também querem vir trabalhar com o foco no lado social no continente africano.

“Algumas questões acabam passando normalmente pela mesma estrutura que você passa trabalhando para uma grande empresa. Tem toda a coisa do corporativo, das relações interpessoais, da burocracia do escritório, principalmente se você trabalha em grandes organizações. Talvez a gente idealize muito, por entender que (o trabalho) é um propósito maior. A gente idealiza aquela estrutura e ela também acaba passando por questões que são sistemáticas no mundo que a gente vive”, esclareceu.

A brasileira destaca que essas grandes organizações vivem de financiamentos, principalmente, de grandes fundações bilionárias e na maioria das vezes beneficiam organizações internacionais em países africanos, em vez das locais. Boa parte dos recursos é usada para manter essas grandes estruturas funcionando. Ou seja: nem sempre a maior parte do orçamento é usada em benefício direto da população.

“Existe um fluxo grande de financiamento que vem, na teoria, para redistribuir riquezas, mas ele acaba voltando para organizações que são também internacionais, que têm a maior parte da liderança de pessoas estrangeiras morando em África”, lembra.

Choque de culturas

Caroline ainda fala do choque de pensamentos, ao enfatizar que, em vez de respeitar culturas locais, muitas vezes essas lideranças estrangeiras trazem um jeito de pensar e agir que é de fora e, mesmo assim, tentam adaptar isso à realidade local, o que nem sempre funciona.

“Eu não contava com isso. Acho que isso é uma questão a ser levada em conta (por quem quer vir para cá fazer o mesmo). Não sei se trabalhando em uma organização brasileira no Brasil eu teria este tipo de observação e crítica. Gera uma certa confusão. Estou aqui para um bem social, mas por outro lado beneficiando uma organização que é estrangeira e que lida com milhões, bilhões de dólares, e de que modo que isso é revertido para a população local”, desabafou.

Nem sempre ela vai às áreas rurais onde estão os pequenos agricultores, regiões com infraestruturas bem diferentes das que se vê na capital. É neste ambiente que ela se dedica mais às pesquisas, tem um contato direto com a população que mais precisa de ajuda para se desenvolver economicamente. “Quando converso com os agricultores acabo esquecendo um pouco o que está acontecendo no mundo dos escritórios”, diz. A maior parte das tarefas ela desenvolve remotamente, mas também já esteve em países como Tanzânia, Zâmbia e Quênia por conta do trabalho.

No dia da entrevista, a brasileira levou a reportagem para um tour gastronômico em Nyamirambo, uma popular região de Kigali onde vivem muitos muçulmanos. A capital ruandesa faz jus a fama de mais limpa do continente africano, embora os desafios urbanos existam aqui também.

A vida em Ruanda

Caroline se considera uma pessoa bem crítica e destaca a influência do autoritário governo de Ruanda no dia a dia da população. O país é comandado pelo mesmo homem há mais de 20 anos. O presidente Paul Kagame tem influência na política de Ruanda desde os anos 1990, quando houve o genocídio contra uma das três etnias do país. Fala-se em quase um milhão de mortos naquele sangrento ano de 1994. Este ainda é um assunto delicado para se tocar com quem não se conhece bem por aqui.

A pele bronzeada e os lisos cabelos escuros que fariam Caroline ser chamada de morena no Brasil a fazem ter um tratamento privilegiado, como uma branca estrangeira em Ruanda.

Ela ressalta que Kigali é uma cidade muito segura, o que para ela também tem a ver com este autoritarismo do governo. É comum ver policiais e até seguranças privados armados com fuzis nas ruas.

Apesar das críticas ao chamado terceiro setor, ela recomenda a experiência, mas com cautela. “Se a pessoa tem interesse em conhecer esse mundo do desenvolvimento internacional é uma experiência importante, inclusive para ter essa percepção mais de perto. Mas tem de vir com a consciência de que não é tudo lindo, ‘cor de rosa’, que existem questões mais complexas que passam por essa questão de, alguma forma, ainda se hierarquizar o que é ocidente, europeu, americano, e o que é ‘não ocidente’, o sul global. No caso, a África, mas pode ser a América do Sul. Então é preciso ter consciência de que isso ainda existe, esse predomínio do norte global sobre o sul global”, conta.

Ela considera a atual experiência “válida”, mas continua se fazendo perguntas como “a quem estou beneficiando com meu trabalho? A quem estou dedicando minha energia?”. A brasileira deixa transparecer que Ruanda não é onde pretende passar o resto da vida. Quer voltar ao Brasil um dia e acredita que esta experiência também a ajudará quando este momento chegar.

“A gente, sim, tem questões muito sérias no nosso país, mas a gente tem a clareza de onde a gente deveria ou poderia ir. E isso de alguma forma até me dá mais motivação talvez em voltar para o Brasil em algum momento e também saber qual o nosso papel, o que a gente pode fazer pelo país”, finalizou.

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