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A tentação de cair no erro alheio. Uma conversa com Joana Lima

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Falar-se da vida por estes dias é como falar da corda na casa de um enforcado. Onde é que isso nos pode levar? A frase é do Vaneigem, mas cintilou mais numa das primeiras críticas sobre os Joy Division, alguém que se soube muito cedo condenado ao dar com aquele som de ressaca de anfetaminas de uma cultura que teve o pressentimento de que a vida, na sua totalidade, ficara suspensa numa negatividade que a corrói e a define formalmente. "O mundo e o homem, enquanto representação, cheiram mal como carniça e já não há nenhum deus por perto para transformar os cemitérios em canteiros de lírios", continua Vaneigem. Continuamos pelos mesmos lugares, arrastando alguma melodia ou uns versos como senha para outro mundo. Mas "desde que se perdeu a chave da vontade de viver, deambulamos pelos corredores de um mausoléu sem fim. O diálogo do acaso e o lance de dados já não bastam para justificar a nossa lassidão; aqueles que ainda aceitam viver num cansaço bem mobilado imaginam-se a si próprios como tendo uma existência indolente, sem notar em cada um dos seus gestos quotidianos uma negação viva do seu desespero, uma negação que deveria antes fazê-los desesperar apenas pela pobreza da sua imaginação". Alguns julgam que nos seus apontamentos trazem algum deus desmembrado e que um dia irão ser capazes de lhe recompor os fragmentos, mas outros habituaram-se ao jogo das palavras, a mudar de lados, a gozar a variação... "Espero que os meus auditores compreendam que não sou um erudito nem um filósofo, mas, sim, um longo diálogo", vincava António Maria Lisboa. Depois daquelas pretensões básicas dos jovens idiotas que sonharam apresentar-se a concurso, carregar alguma fita, ser celebrados como misses, e depois de chegarmos à conclusão de que a matéria se acabou, de que não vale a pena exigir mais nenhuma extensão, resta a sensação de se ter o hálito contaminado de fantasmas, de que devemos abrir o espaço entre as zonas ínfimas e desatendidas. Tem-se a ocupação de uma frase para habituar o juízo a expandir a pulsação, criar um remanso de lentura num tempo obcecado com a velocidade. A vantagem do verso é que este se inclina à entoação de tal modo que nos recorda sempre que esta foi uma arte oral antes de ser uma arte escrita, recorda-nos que foi um canto. Foi esse bando de homens misturados na profunda consciência homérica e que insistem que "os deuses tecem as desventuras aos homens para que as gerações vindouras tenham alguma coisa que cantar". E esse canto traduzia a própria fibra da experiência, esta valentia dos que não se importam demasiado com a canalhice da vida, uma vez que se reconhecem feitos para outra medida, outro alcance, outra entoação... Fomos feitos para a memória, para a poesia, ou, em alternativa, para o esquecimento. Se ainda persiste na leitura que se faz de forma solitária, silenciosa, alguma vertigem, essa está no fazer acompanhar-se dessas outras vozes que nos emergem nos lábios, as variações que fazem desse foco uma via para a insubordinação, para uma transformação do mundo. Hoje, a nossa própria natureza torna-se-nos estranha, como se desgostada diante de todo este retraimento, dessa incapacidade "de focar o nosso próprio presente, como se nos tivéssemos tornado incapazes de obter representações estéticas da nossa própria experiência actual", vinca Fredric Jameson, empenhadíssimo e exaltante crítico literário que desapareceu há dias e que nunca se cansou de assinalar como o capitalismo de consumo estava a programar "uma sociedade incapaz de lidar com o tempo e a história". Outro que tocou com a língua o céu da boca e se foi daqui há umas horas, Armando Freitas Filho, poeta que vencia a gaguez apercebendo-se do lucro que nasce com cada dificuldade e que foi passando a limpo toda a desteridade de uma fala mil vezes composta na cabeça antes de se atirar ao mundo, ter-se-á dado conta de que dizer, falar, cantar, ao contrário do que a maioria pensa, não é um modo de expelir algo, mas é sobretudo uma forma de ingestão. Fazemos sons para descobrir os vocábulos que possam fazer o que a saxifraga faz à pedra. É um modo de encantar o mundo e decompô-lo em porções digeríveis. Mesmo o corpo é só uma colher para trazê-lo à boca. E este poeta brasileiro ocupava-se dessas comunicações... "assim, numa transmissão de/ sustos e rangidos,/ veia e voz, ao vivo, sob tanto/ sangue: pantera escarlate/ que passa e pisa// e se espatifa nesse chão:/ pata de lacre,/ grito, pingo/ sobre o alvo/ tão tátil da minha carne,/ nos panos// repentinos do meu espanto,/ nas janelas/ onde me debruço sucessivo/ e vário, sequência de mim,/ em fotonovelas// me desdobro — quadro por quadro,/ nos desenhos/ de dentro do que sou e projeto,/ aos poucos — plano e pausa —/ para fora// com a vida que me veste/ pelo avesso:/ — filmes de sêmen onde publico/ figuras de suor e celulóide,/ numa lâmina// de velocidade e de lembrança,/ em fotogramas/ de esperas e procuras — falha,/ folha de slides-células, sopro/ e pulso,// página de pele em que escrevo/ o uso,/ a articulada letra do meu gesto,/ o rascunho de unhas & rasuras/ feito à unha// nas nuas marcas/ do meu corpo/ no espaço/ e nos lençóis da claridade,/ monograma, silhueta, cadência,/ e a fala// que se imprime nesta fita,/ neste sulco:/ — a linguagem como um fim,/ — a linguagem por um fio,/ e a morte em morse." Fica aqui assim esta frágil lembrança de um irmão que Carlos de Oliveira deixou do outro lado do Atlântico quando se mudou. Quanto a nós, depois de um hiato que se estendeu mais do que queríamos, estamos de volta ao diálogo a três, e pudemos contar desta vez com a orientação de Joana Lima, que escreveu uma das raras monografias dedicadas a António Maria Lisboa ("Eterno Amoroso", Edições Colibri), mas que nos ofereceu sobretudo um pacto de leitura e descodificação cúmplice e encantada da sua tão exígua quanto fulgurante obra. Pedimos-lhe algumas pistas para reiniciar o tal projecto de sucessão.

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O diálogo do acaso e o lance de dados já não bastam para justificar a nossa lassidão; aqueles que ainda aceitam viver num cansaço bem mobilado imaginam-se a si próprios como tendo uma existência indolente, sem notar em cada um dos seus gestos quotidianos uma negação viva do seu desespero, uma negação que deveria antes fazê-los desesperar apenas pela pobreza da sua imaginação". Alguns julgam que nos seus apontamentos trazem algum deus desmembrado e que um dia irão ser capazes de lhe recompor os fragmentos, mas outros habituaram-se ao jogo das palavras, a mudar de lados, a gozar a variação... "Espero que os meus auditores compreendam que não sou um erudito nem um filósofo, mas, sim, um longo diálogo", vincava António Maria Lisboa. Depois daquelas pretensões básicas dos jovens idiotas que sonharam apresentar-se a concurso, carregar alguma fita, ser celebrados como misses, e depois de chegarmos à conclusão de que a matéria se acabou, de que não vale a pena exigir mais nenhuma extensão, resta a sensação de se ter o hálito contaminado de fantasmas, de que devemos abrir o espaço entre as zonas ínfimas e desatendidas. Tem-se a ocupação de uma frase para habituar o juízo a expandir a pulsação, criar um remanso de lentura num tempo obcecado com a velocidade. A vantagem do verso é que este se inclina à entoação de tal modo que nos recorda sempre que esta foi uma arte oral antes de ser uma arte escrita, recorda-nos que foi um canto. Foi esse bando de homens misturados na profunda consciência homérica e que insistem que "os deuses tecem as desventuras aos homens para que as gerações vindouras tenham alguma coisa que cantar". E esse canto traduzia a própria fibra da experiência, esta valentia dos que não se importam demasiado com a canalhice da vida, uma vez que se reconhecem feitos para outra medida, outro alcance, outra entoação... Fomos feitos para a memória, para a poesia, ou, em alternativa, para o esquecimento. Se ainda persiste na leitura que se faz de forma solitária, silenciosa, alguma vertigem, essa está no fazer acompanhar-se dessas outras vozes que nos emergem nos lábios, as variações que fazem desse foco uma via para a insubordinação, para uma transformação do mundo. Hoje, a nossa própria natureza torna-se-nos estranha, como se desgostada diante de todo este retraimento, dessa incapacidade "de focar o nosso próprio presente, como se nos tivéssemos tornado incapazes de obter representações estéticas da nossa própria experiência actual", vinca Fredric Jameson, empenhadíssimo e exaltante crítico literário que desapareceu há dias e que nunca se cansou de assinalar como o capitalismo de consumo estava a programar "uma sociedade incapaz de lidar com o tempo e a história". Outro que tocou com a língua o céu da boca e se foi daqui há umas horas, Armando Freitas Filho, poeta que vencia a gaguez apercebendo-se do lucro que nasce com cada dificuldade e que foi passando a limpo toda a desteridade de uma fala mil vezes composta na cabeça antes de se atirar ao mundo, ter-se-á dado conta de que dizer, falar, cantar, ao contrário do que a maioria pensa, não é um modo de expelir algo, mas é sobretudo uma forma de ingestão. Fazemos sons para descobrir os vocábulos que possam fazer o que a saxifraga faz à pedra. É um modo de encantar o mundo e decompô-lo em porções digeríveis. Mesmo o corpo é só uma colher para trazê-lo à boca. E este poeta brasileiro ocupava-se dessas comunicações... "assim, numa transmissão de/ sustos e rangidos,/ veia e voz, ao vivo, sob tanto/ sangue: pantera escarlate/ que passa e pisa// e se espatifa nesse chão:/ pata de lacre,/ grito, pingo/ sobre o alvo/ tão tátil da minha carne,/ nos panos// repentinos do meu espanto,/ nas janelas/ onde me debruço sucessivo/ e vário, sequência de mim,/ em fotonovelas// me desdobro — quadro por quadro,/ nos desenhos/ de dentro do que sou e projeto,/ aos poucos — plano e pausa —/ para fora// com a vida que me veste/ pelo avesso:/ — filmes de sêmen onde publico/ figuras de suor e celulóide,/ numa lâmina// de velocidade e de lembrança,/ em fotogramas/ de esperas e procuras — falha,/ folha de slides-células, sopro/ e pulso,// página de pele em que escrevo/ o uso,/ a articulada letra do meu gesto,/ o rascunho de unhas & rasuras/ feito à unha// nas nuas marcas/ do meu corpo/ no espaço/ e nos lençóis da claridade,/ monograma, silhueta, cadência,/ e a fala// que se imprime nesta fita,/ neste sulco:/ — a linguagem como um fim,/ — a linguagem por um fio,/ e a morte em morse." 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