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Chamar a crítica para a mesa dos canibais. Uma conversa com Carlos Maria Bobone

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Não se chega a uma versão contemporânea da pergunta "o que é um leitor" sem o medir, avaliando as suas escolhas, face à proliferação de livros que hoje se publicam. E isto porque, como notou Benjamin, "antes de as pessoas chegarem ao ponto de abrir um livro, já um tão denso turbilhão de letras mutáveis, coloridas, conflituosas caiu sobre os seus olhos, que as possibilidades de penetrar no silêncio arcaico do livro se tornaram escassas". Ele ainda adianta que "os enxames de gafanhotos da escrita que hoje encobrem o sol do suposto espírito aos habitantes das grandes cidades, irão tornar-se mais densos de ano para ano". Chegados a este ano algo mirífico e inimaginável, sobretudo pelos efeitos da redundância e ruído incessante que obrigam cada leitor a escavar um buraco tão fundo de tal modo que possa escapulir-se desta época, lendo como um escafandrista a umas boas léguas de profundidade, aquele sol está reduzido a um candeeiro intermitente. Por estes dias, o imaginário aloja-se entre o livro e esse candeeiro, e um bom leitor reconhece-se sobretudo por aquilo que logo rejeita, todos esses livros que apenas cheira e descarta. Numa das suas breves teses sobre a técnica do crítico, o ensaísta alemão diz-nos que "polémica significa arrasar um livro com base em poucas das suas frases". "Quanto menos se examinou o livro, melhor. Só quem é capaz de arrasar pode criticar." Logo a seguir eleva o tom de provocação, dizendo-nos que "a polémica autêntica ocupa-se de um livro com tanto carinho como um canibal prepara um bebé". Tinha teses maravilhosas este tipo. Tantos dos que fazem dele um solene exegeta, um tão escrupuloso e grave juiz da contemporaneidade, benzem-se diante de algumas das suas asserções que roçam a blasfémia para esse culto beato que cerca os livros. A ele pareceu-lhe útil relacionar os livros e as prostitutas, começando por notar que, desde logo, se aproximam por se poder fruir destes e daquelas levando-os para a cama. "Os livros e as prostitutas entretecem o tempo. Dominam tanto a noite como o dia e tanto o dia como a noite." Mais? Sim: "Os livros e as prostitutas não dão a entender que os minutos lhes são preciosos. Quando nos envolvemos com eles mais de perto é que notamos a pressa que têm. Vão contando o tempo à medida que nos embrenhamos neles." Quantos desses cursos literários, seja na universidade seja nas abordagens menos sistemáticas, nesse regime de catequese e formação para a caridade promovido pelos festivais, se lembrariam de admitir que a frequência do putedo (o outro, aquele mais prestimoso) poderá ser um trunfo para o judicioso embalo de um crítico literário? Benjamin não duvida de que "os livros e as prostitutas sempre tiveram um amor infeliz uns pelos outros". Só mais uma (e esta é fundamental): "Os livros e as prostitutas gostam de contar, com muito prazer e muitas mentiras, como se tornaram no que são. Na verdade, muitas vezes nem eles próprios reparam nisso. Anda-se anos a fio atrás de tudo 'por amor' e, um belo dia, eis na rua a solicitar clientes um corpus avantajado que sempre apenas pairara acima dela, 'por curiosidade científica'." Já sabemos que aliança daria o ponto de partida para um evento literário que realmente quisesse deixar de pautar-se pelo esquematismo enfastiante a que nos vão habituando os nossos programadores culturais. Se a vida não se detém, apesar dos esforços em sentido contrário, das pressões para prever e controlar tudo até aos mais ínfimos detalhes, aquele momento que mais nos cativa é quando esta se separa daquilo que habitualmente se lê, seguindo o seu curso. Num universo saturado de livros, onde tudo está escrito, ficamos com a sensação de que não nos resta outra coisa senão reler, ler de outro modo, ganhar ousadia e persistir nas suas derivas. Não podemos ter criadores exaltantes enquanto não aprendermos a ler de forma digressiva e selvagem. A liberdade no uso dos textos é um aspecto crucial para que o leitor deixe de se sentir submetido à intenção autoral, para que leia desfazendo-se da orientação pré-definida, ajudando assim a que a literatura não se confunda com as refeições pré-cozinhadas que ocupam secções cada vez mais vastas nos supermercados. O melhor leitor é o pior leitor, aquele que não se submete a nenhuma outra disciplina senão o seu próprio interesse, necessidade, apetites, urgências. Como registava Ricardo Piglia, encontraremos os grandes instigadores de uma retomada do ânimo das vanguardas nesses leitores que traçam os seus percursos gozando de "uma certa arbitrariedade, uma certa inclinação deliberada para ler mal, para ler fora do lugar, para relacionar séries impossível". No entender deste escritor argentino, a maior invenção de Borges terá sido esse leitor que goza uma autonomia absoluta, e que manifesta a sua capacidade de ler tudo como ficção e de acreditar no seu por: "A ficção como uma teoria da leitura." Neste episódio, e para levarmos mais longe as nossas investigações sobre o papel da crítica literária na recomposição de um espaço literário, de modo a que a obra de arte possa uma vez mais funcionar como uma "central de energia", inspirando e desafiando a vida, neste episódio contámos com a participação de Carlos Maria Bobone, alfarrabista, escritor e crítico literário que tem demonstrado uma sagacidade e uma erudição invulgaríssimas e que fazem dele um dos elementos decisivos dessa caça às avessas de tudo aquilo que são as tendências e compulsões da época.

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Por estes dias, o imaginário aloja-se entre o livro e esse candeeiro, e um bom leitor reconhece-se sobretudo por aquilo que logo rejeita, todos esses livros que apenas cheira e descarta. Numa das suas breves teses sobre a técnica do crítico, o ensaísta alemão diz-nos que "polémica significa arrasar um livro com base em poucas das suas frases". "Quanto menos se examinou o livro, melhor. Só quem é capaz de arrasar pode criticar." Logo a seguir eleva o tom de provocação, dizendo-nos que "a polémica autêntica ocupa-se de um livro com tanto carinho como um canibal prepara um bebé". Tinha teses maravilhosas este tipo. Tantos dos que fazem dele um solene exegeta, um tão escrupuloso e grave juiz da contemporaneidade, benzem-se diante de algumas das suas asserções que roçam a blasfémia para esse culto beato que cerca os livros. A ele pareceu-lhe útil relacionar os livros e as prostitutas, começando por notar que, desde logo, se aproximam por se poder fruir destes e daquelas levando-os para a cama. "Os livros e as prostitutas entretecem o tempo. Dominam tanto a noite como o dia e tanto o dia como a noite." Mais? Sim: "Os livros e as prostitutas não dão a entender que os minutos lhes são preciosos. Quando nos envolvemos com eles mais de perto é que notamos a pressa que têm. Vão contando o tempo à medida que nos embrenhamos neles." Quantos desses cursos literários, seja na universidade seja nas abordagens menos sistemáticas, nesse regime de catequese e formação para a caridade promovido pelos festivais, se lembrariam de admitir que a frequência do putedo (o outro, aquele mais prestimoso) poderá ser um trunfo para o judicioso embalo de um crítico literário? Benjamin não duvida de que "os livros e as prostitutas sempre tiveram um amor infeliz uns pelos outros". Só mais uma (e esta é fundamental): "Os livros e as prostitutas gostam de contar, com muito prazer e muitas mentiras, como se tornaram no que são. Na verdade, muitas vezes nem eles próprios reparam nisso. Anda-se anos a fio atrás de tudo 'por amor' e, um belo dia, eis na rua a solicitar clientes um corpus avantajado que sempre apenas pairara acima dela, 'por curiosidade científica'." Já sabemos que aliança daria o ponto de partida para um evento literário que realmente quisesse deixar de pautar-se pelo esquematismo enfastiante a que nos vão habituando os nossos programadores culturais. Se a vida não se detém, apesar dos esforços em sentido contrário, das pressões para prever e controlar tudo até aos mais ínfimos detalhes, aquele momento que mais nos cativa é quando esta se separa daquilo que habitualmente se lê, seguindo o seu curso. Num universo saturado de livros, onde tudo está escrito, ficamos com a sensação de que não nos resta outra coisa senão reler, ler de outro modo, ganhar ousadia e persistir nas suas derivas. Não podemos ter criadores exaltantes enquanto não aprendermos a ler de forma digressiva e selvagem. A liberdade no uso dos textos é um aspecto crucial para que o leitor deixe de se sentir submetido à intenção autoral, para que leia desfazendo-se da orientação pré-definida, ajudando assim a que a literatura não se confunda com as refeições pré-cozinhadas que ocupam secções cada vez mais vastas nos supermercados. O melhor leitor é o pior leitor, aquele que não se submete a nenhuma outra disciplina senão o seu próprio interesse, necessidade, apetites, urgências. Como registava Ricardo Piglia, encontraremos os grandes instigadores de uma retomada do ânimo das vanguardas nesses leitores que traçam os seus percursos gozando de "uma certa arbitrariedade, uma certa inclinação deliberada para ler mal, para ler fora do lugar, para relacionar séries impossível". No entender deste escritor argentino, a maior invenção de Borges terá sido esse leitor que goza uma autonomia absoluta, e que manifesta a sua capacidade de ler tudo como ficção e de acreditar no seu por: "A ficção como uma teoria da leitura." Neste episódio, e para levarmos mais longe as nossas investigações sobre o papel da crítica literária na recomposição de um espaço literário, de modo a que a obra de arte possa uma vez mais funcionar como uma "central de energia", inspirando e desafiando a vida, neste episódio contámos com a participação de Carlos Maria Bobone, alfarrabista, escritor e crítico literário que tem demonstrado uma sagacidade e uma erudição invulgaríssimas e que fazem dele um dos elementos decisivos dessa caça às avessas de tudo aquilo que são as tendências e compulsões da época.

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