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#120 Leitura de fôlego ep. 3 – Capitu e suas herdeiras? Personagens femininas silenciadas

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Neste terceiro episódio da Série Leitura de Fôlego, Lúcia Granja, professora do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, fala sobre sua pesquisa relacionada ao silenciamento da mulher em obras literárias brasileiras. Os autores estudados têm um perfil muito semelhante, são, em maioria, homens, brancos, e vivem no Rio de Janeiro e em São Paulo. Através de seus personagens homens, em geral os narradores das histórias que ao contarem sobre algum conflito pelo qual passam ou passaram, tentam omitir a voz da mulher em relação ao acontecimento narrado, sem muito sucesso. Lúcia vem estudando esse tema há quase 30 anos e neste podcast ela conta para a Laís Toledo, algumas passagens de obras importantes, e vai analisando justamente esse aspecto encontrado na literatura brasileira.

_________________________

Laís Toledo: Oi! Eu sou a Laís Toledo, e esse é um episódio da “Leitura de fôlego”, uma série sobre Literatura pro Oxigênio.

Laís: Um homem e uma mulher formam um casal. Por algum motivo, acontece um conflito entre eles, e esse relacionamento acaba. O homem, depois, resolve contar esse conflito. Com isso, ele procura dar um novo significado pra própria vida e, ao mesmo tempo, silenciar, omitir, a voz da mulher em relação ao que aconteceu entre os dois. Mas, de alguma forma, a voz dessa mulher consegue escapar e aparecer na história… A Lúcia Granja, que conversa com a gente nesse episódio, percebeu que esse modelo de narrativa se repete em algumas importantes obras literárias brasileiras. Partindo do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, a nossa conversa passa por Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Raduan Nassar até chegar a um escritor contemporâneo, o Marcelo Mirisola. A Lúcia é professora e pesquisadora do Instituto de Estudos da Linguagem, o IEL da Unicamp. Ela pesquisa principalmente a obra do Machado de Assis; em especial, as crônicas desse escritor e as relações entre Literatura e Jornalismo na produção dele.

Laís: A Lúcia propõe essa análise sobre o silenciamento feminino como uma linha de força na ficção brasileira. Ou seja, como um tema recorrente. Ela desenvolveu essa análise a partir do conhecimento que tem sobre o Machado de Assis e a partir também de pesquisas didáticas que ela vem fazendo há quase 30 anos para oferecer disciplinas, na universidade, sobre Literatura brasileira. Pra começar a conversa, então, eu pedi pra Lúcia explicar essa leitura que ela faz.

Lúcia Granja: Eu acabei percebendo que existe pelo menos um modelo inicial que vai se desdobrar no século XX em termos de romance: um homem que narra o conflito amoroso (um homem, portanto, que é um narrador personagem), que, depois de ter vivido uma situação traumática de conflito amoroso, vai falar desse conflito e isso seria o romance. Portanto, é um romance autobiográfico. E, nesse caso, existe um processo duplo, que é o processo de silenciamento da mulher, que é o par amoroso desse homem, mas às vezes essa mulher, de alguma maneira, ela recupera um espaço de fala dentro desse relato, que seria o relato unilateral de um homem. Isso vai se transformando ao longo do século XX e vai mudando de romance para romance.

Laís: Para essa análise, a Lúcia selecionou alguns romances, entre outros que poderiam ser incluídos nesse modelo. Eu pedi pra ela comentar sobre essas escolhas.

Lúcia: Eu pensei em Dom Casmurro como um paradigma de início, porque Dom Casmurro inaugura o século XX. Dom Casmurro chegou ao Brasil em janeiro de 1900, embora ele tenha sido publicado em 1899 pelos editores Garnier em Paris, ele chegou ao Rio de Janeiro em janeiro de 1900. Então, a partir de Dom Casmurro, o paradigma se estende pra Graciliano Ramos, São Bernardo, depois, de uma maneira muito mais complexa, Grande Sertão: Veredas, mais tarde, Um copo de cólera e, depois, eu acabei abrindo para um romance absolutamente contemporâneo, de um escritor que se chama Marcelo Mirisola, e que se chama Hosana na sarjeta, o romance. Então, a ideia é, na realidade, falar desse silenciamento feminino e de como isso, no conflito amoroso, cria uma linha de narrativas dentro da Literatura brasileira. Então, acho que uma linha de força, porque nós estamos diante de narradores homens que narram o conflito amoroso. E por que que é o homem que narra o conflito amoroso?

Lúcia: Aí eu vou pra um dado empírico que é o seguinte. Tem uma professora da UnB que tem feito muita pesquisa sobre quem são os escritores brasileiros. Essa professora é a Regina Dalcastagné. Ela tem feito uma pesquisa extensiva, de romances entre 1990 e 2004. Na verdade, eu estou com dados um pouco antigos da pesquisa dela, porque a pesquisa continuou, mas eu acho que as porcentagens não mudaram muito, não. E a pesquisa que ela fez mostra que os autores brasileiros (eu acho que não só brasileiros, mas ela está focada nos brasileiros) são na maioria brancos (90%), homens (70%) e a maioria deles mora no Rio de Janeiro e em São Paulo (arredondando 50% no RJ e 20% em SP), desses que são homens e brancos, que daria 70%.

Laís: Para quem quiser conhecer um pouco mais sobre a pesquisa da professora Regina Dalcastagnè, eu vou deixar na descrição do episódio o link de uma entrevista que ela deu em 2018 para a Revista Cult, chamada “Quem é e sobre o que escreve o autor brasileiro”. Bom, mas voltando para o tema do episódio, a Lúcia partiu desses dados sobre o perfil do escritor brasileiro – homem, branco e do eixo Rio-São Paulo – para desenvolver a sua análise.

Lúcia: É um dado muito interessante da Literatura contemporânea, mas que não pertence apenas à Literatura contemporânea. Quer dizer, a adoção do ponto de vista masculino por esse narrador que narra o conflito amoroso tem por detrás a própria autoria masculina. Então, foi pensando nisso também que a pesquisa dela me deu forças para acreditar que existe uma relação entre essas duas coisas, entre autoria, entre criação de um relato ficcional autobiográfico e a projeção, dentro desse relato, de dados da nossa sociedade, que são dados evidentes. A nossa sociedade é uma sociedade onde a organização privada da família foi estruturada à moda paternalista, de maneira paternalista, onde existe um chefe de família que é responsável, que se dedica a, enfim, organizar tudo que acontece dentro dessa família, com dominação. Então, aí também evidentemente, além da dominação que submete os dependentes, existe uma dominação masculina, que impera no seio da família. E de uma certa maneira, dentro das relações entre homem e mulher, por mais que elas tenham mudado ao longo do tempo.

Laís: Pra gente entender um pouco melhor como essas personagens femininas são silenciadas (e também como as vozes delas acabam aparecendo de alguma maneira), eu pedi pra Lúcia começar apresentando o caso de Dom Casmurro, do Machado de Assis. Nesse episódio, a gente vai falar um pouco mais sobre esse romance e, depois, passar mais rápido pelas variações desse modelo de narrativa nas outras obras selecionadas pela Lúcia.

Laís: O enredo de Dom Casmurro é bastante conhecido, mas, só pra lembrar rapidinho: o livro é narrado por um homem, o Bento Santiago (também chamado de Bentinho ou Dom Casmurro), que, quando já está mais velho, resolve escrever sobre a própria vida. Ele fala das dificuldades que teve para se casar com a sua vizinha Capitolina, a Capitu. E, depois do casamento, ele acha o próprio filho muito parecido com seu melhor amigo e desconfia que a Capitu o tenha traído.

Lúcia: Em Dom Casmurro, o que que acontece? Os ciúmes crescentes do Bentinho, não vamos aqui discutir, porque seria longo demais, a culpa da Capitu, se a Capitu traiu ou não traiu o Bentinho, mas os ciúmes crescentes, quer a Capitu tenha traído ou não, levam-no a tomar decisões unilaterais. Isso que eu acho que é o mais importante dentro dessa questão do silêncio e do silenciamento.

Laís: Então, vamos ver mais de perto o momento em que o Bentinho comunica para Capitu essa decisão unilateral dele, a decisão de colocar um fim no relacionamento, exilando a Capitu na Europa. Essa cena aparece no capítulo 138 do livro, chamado “Capitu que entra”.

Lúcia: É um momento crucial em que ele já está decidido a acabar com aquilo. Bom, ele tinha tentado dar café envenenado pro filho, ele mesmo estava pensando em ingerir aquele veneno que ele havia comprado no dia anterior, mas tem um lance muito interessante, que ele vai dizer assim pra gente:

Dom Casmurro (narrador): Quando levantei a cabeça, dei com a figura de Capitu diante de mim. Eis aí outro lance, que parecerá de teatro…

Lúcia: Essa cena toda que vai se passar entre eles é muito teatral. Aí, ele vai dizer, a Capitu queria saber o que que estava acontecendo, tinha um conflito ali, a criança estava chorando. Aparentemente, ela foi atraída pro escritório do Bentinho pelo choro do filho, e ele vai dizer assim, o Bentinho, narrador, narrando seu conflito amoroso:

Dom Casmurro (narrador): Desta vez ao dar com ela, não sei se era dos meus olhos, mas Capitu pareceu-me lívida. Seguiu-se um daqueles silêncios, a que, sem mentir, se podem chamar de um século, tal é a extensão do tempo nas grandes crises.

Lúcia: Quer dizer, o silêncio é a expressão da crise pro Bentinho. E aí ele continua:

Dom Casmurro (narrador): Capitu recompôs-se, disse ao filho que fosse embora, e pediu-me que lhe explicasse…

Bentinho (personagem): Não há o que explicar.

Capitu: Há tudo; não entendo as tuas lágrimas nem as de Ezequiel. Que houve entre vocês?

Laís: Ezequiel é o nome do filho deles; nome que foi escolhido em homenagem ao melhor amigo do Bentinho, que se chamava Ezequiel Escobar.

Lúcia: Aí, então, o Bentinho vai perguntar se ela não ouvira o que ele disse, e ela vai responder que ouviu justamente o choro, rumor de palavras, tal, e o Bentinho vai finalmente jogar na cara dela que acha que o Ezequiel não é seu filho. Aí vem essa parte bem teatral da cena:

Dom Casmurro (narrador): Grande foi a estupefação de Capitu, e não menor a indignação que lhe sucedeu, tão naturais ambas que fariam duvidar as primeiras testemunhas de vista do nosso foro […]. Mas, haja ou não testemunhas alugadas, a minha era verdadeira; a própria natureza jurava por si, e eu não queria duvidar dela.

Lúcia: Ele está falando da semelhança que ele alega existir entre o Ezequiel e o Escobar.

Dom Casmurro (narrador): Assim que, sem atender a linguagem de Capitu, aos seus gestos, à dor que a retorcia, a coisa nenhuma, repeti as palavras ditas duas vezes com tal resolução que a fizeram afrouxar.

Lúcia: Então sem atender a toda aquela expressão da Capitu, que era uma expressão muito teatral: a linguagem, os gestos, a dor que a retorcia. Então, ela está falando, ela está se mexendo, ela está se contorcendo de dor. Quer dizer, tem uma expressão da Capitu por todos os meios, ele apenas repete “Ezequiel não é meu filho”. E aí, justamente, quando a Capitu consegue se recompor, ela vai lhe perguntar o que é que lhe deu tal ideia.

apitu: Que é que lhe deu agora tal convicção? Ande, Bentinho, fale! Fale! Despeça-me daqui, mas diga tudo primeiro.

Bentinho (personagem): Há coisas que não se dizem.

Capitu: Que se não dizem só metade; mas já que disse metade, diga tudo.

Dom Casmurro (narrador): Pedi-lhe ainda uma vez que não teimasse.

Capitu: Não, Bentinho, ou conte o resto, para que eu me defenda, se você acha que tenho defesa, ou peço-lhe desde já a nossa separação: não posso mais!

Bentinho (personagem): A separação é coisa decidida. […] Era melhor que a fizéssemos por meias-palavras ou em silêncio; cada um iria com a sua ferida.

Lúcia: Da parte dele, ele quer resolver tudo em silêncio. Nem que os gestos dela, que a dor dela, que as palavras, que o que ela diz naquele momento, seja grande, seja expressivo, no momento mais dramático da relação deles, ele fica em silêncio e diz isso pra ela: “a separação é coisa decidida, e há coisas que não se dizem” e ela vai dizer “que não se dizem pela metade”. Mas o que que acontece? Embora ela exija dele a explicação, essa explicação não vem. Ou vem por meias-palavras, como ele mesmo vai dizer depois. Significa que o silêncio dele impõe à Capitu um silenciamento. E a separação é coisa decidida, mas não é só a separação que era coisa decidida, a forma da separação também era coisa decidida. Ele exila a Capitu. A Capitu vai morar na Suíça, ele finge para os contemporâneos dele que ele vai todos os anos à Europa ver a família, e não. Quer dizer, existe, na verdade, tanto uma atitude e uma decisão unilateral dele e que ele impõe da forma mais silenciosa possível quanto a condenação ao exílio que ele também promove em relação à Capitu e ao filho que ele supõe que não seja dele.

Laís: Então, quando o Bentinho se nega a conversar com a Capitu sobre a suposta traição dela e já decide como vai ser a separação dos dois, como se dissesse “esse caso não é da sua conta”, ele estava silenciando a Capitu; ou seja, o silêncio dele impediu que ela se manifestasse naquela situação de crise no relacionamento deles… Ah, acho que é bom comentar que narrador e autor são coisas diferentes. Quer dizer, essa situação de silenciamento feminino não significa que o Machado (ou os outros autores que também vão aparecer no episódio) estivesse automaticamente defendendo uma sociedade patriarcal; ele estava falando dessa sociedade. E eu acho que é até possível dizer que essa situação foi criticada, já que, apesar do silenciamento imposto com sucesso nessa cena do capítulo 138, a Capitu, ao longo do livro, aparece de forma inclusive poderosa, nas dúvidas que o Bentinho narrador deixa escapar, quando se lembra do seu passado e conta a sua história. Ele – que decidiu, sozinho, exilar a Capitu – parece querer convencer o leitor de que foi traído, mas, ao mesmo tempo, parece que ele quer convencer a si próprio de que tomou a decisão correta. Através dessas dúvidas de um velho deprimido, casmurro, é como se a voz, a versão da Capitu aparecesse no romance.

Laís: Bom, acho que deu para ter uma ideia da leitura da Lúcia sobre a questão do silenciamento feminino em Dom Casmurro, o romance que ela escolheu como um ponto de partida para observar essa questão, que aparece e reaparece na Literatura brasileira. Agora, vamos avançar uns 30 anos e ver o caso de São Bernardo, um romance do Graciliano Ramos, publicado pela primeira vez em 1934. Esse livro é narrado pelo Paulo Honório, que, assim como Bentinho, quando está mais velho, escreve um livro sobre sua própria história. Ele conta as dificuldades que passou na vida e os meios (até ilegais e violentos) que ele usou para comprar a sua fazenda, chamada justamente São Bernardo. O Paulo Honório conta também sobre o seu casamento com a Madalena. Ela seria a mulher silenciada nessa narrativa.

Lúcia: Em São Bernardo, nós vamos ter uma comunicação explícita com a forma de Dom Casmurro. Então, esse narrador atormentado, que conta, que faz uma autobiografia, porque ele precisa aprender alguma coisa a respeito da história dele por meio daquela autobiografia. E ali ele vai mostrar como, de novo, o ciúme e, na verdade, o machismo dele foram protagonistas no silenciamento progressivo que ele impôs à Madalena, do qual ela sai, não como a Capitu, de uma forma submissa, mas ela sai pelo suicídio. Quer dizer, ela impõe-se um silenciamento que é um silenciamento que não pode calar, porque, depois que uma pessoa se suicida, a gente tem que falar sobre aquilo, sobretudo se esse sujeito está no centro da atitude que a Madalena tomou. Então, ela vive uma relação com ele, ele é um fazendeiro, controlador, dentro desse esquema patriarcal da sociedade brasileira, e com atitudes paternalistas em relação à mulher e à família, e ele vai impor, então, esse silenciamento a ela, por meio da opressão. O Bentinho vai ficando deprimido, ele não, ele se torna muito agressivo, ele oprime realmente.

Laís: Agora, vamos avançar mais um pouco no tempo, para 1956, quando o João Guimarães Rosa publicou o livro Grande Sertão: Veredas, narrado pelo ex-jagunço Riobaldo. Esse personagem conta a história da sua vida para um senhor e fala bastante sobre o amor que sentia por outro jagunço, chamado Diadorim. Mas, perto do fim do livro, o Riobaldo revela para esse senhor que o Diadorim era, na verdade, uma mulher. O Riobaldo só descobre isso depois da morte do Diadorim, e o leitor só vai ficar sabendo disso no final do livro.

Lúcia: Depois um outro narrador que vai fazer um relato autobiográfico para tentar ressignificar a sua vida é o próprio Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas. Ali, qual que é a questão? Tem várias questões ligadas ao silenciamento nesse romance. Primeiro, o amor deles em vida, dele e do Diadorim, que, na verdade, era Diadorina, ele ficou não dito, ficou não expresso, não realizado, ele ficou silenciado. Pelo menos é o que ele conta pra gente no fim.

Laís: Bom, essa é uma questão relacionada ao silenciamento nesse livro, mas a Lúcia destacou outros pontos.

Lúcia: Depois, a gente vê que o silenciamento é muito mais complexo, porque ele é um silenciamento da própria mulher, por vontade do pai da Diadorina, que era o Joca Ramiro, e por obediência dessa filha ao pai. Não se sabe se só por obediência da filha ao pai ou se realmente por uma vontade de adotar uma identidade masculina. Então, a gente tem ali o silenciamento da mulher que já foi praticado, depois, o silenciamento dessa mulher dentro de uma vida inteira como jagunça e o silenciamento da relação amorosa dos dois que só vai se revelar com a descoberta da verdadeira identidade de gênero dela, depois da morte. Então, é um caso bastante complexo também. A gente pode talvez dizer que tudo fica circunscrito ao não dito. As coisas acontecem de maneira que jamais elas são explicitamente declaradas, nem mesmo a própria identidade da pessoa numa relação tão próxima, como a Diadorina tem, e o Diadorim, portanto, tem com o Riobaldo; e depois o que acontece é que essa relação é totalmente sufocada. Daí o relato de 600 páginas, que equivaleria a um relato de 3 dias, em que ele tenta, como narrador masculino fazendo um relato autobiográfico, colocar em ordem a vida e a cabeça dele.

Laís: O Grande Sertão: Veredas, como a Lúcia disse, é um romance longo e a sua leitura não é simples. A linguagem do livro é experimental, o enredo é cheio de personagens, e não segue uma ordem linear, ele segue uma ordem da memória. A própria questão do silêncio e do silenciamento é mais complexa nesse caso e poderia ser desdobrada. Mas agora vamos passar para o penúltimo livro que será comentado neste episódio, um livro bem mais curto, com cerca de 80 páginas: Um copo de cólera, do Raduan Nassar. Um copo de cólera é uma novela, o que, dizendo de forma simples, é um tipo de texto maior que um conto e menor que um romance. Ele foi publicado pela primeira vez em 1978 e é centrado no relato de um encontro e de uma briga de um casal.

Lúcia: No Copo de cólera, existe um esquema aparentemente cíclico, são 7 capítulos e esses 7 capítulos formariam um ciclo de vida. Se a gente for ver, tem uma relação com o Gênesis, com cada dia da criação. E no sétimo dia aparece a voz da mulher. Quer dizer, esse ciclo é ao mesmo tempo fechado e interrompido, porque a mulher retoma a palavra no sétimo capítulo. Tudo que é contado no primeiro capítulo, e a história que se desenrola durante os seis capítulos contados pela voz masculina (que também está ressignificando aquela relação e contando na primeira pessoa), no sétimo capítulo vai, aparentemente, ser recontado pela voz feminina. Então, ela vai justamente recontando tudo o que a cena inicial do primeiro capítulo, ela aparece refeita pelo ponto de vista feminino no sétimo capítulo. É exatamente a mesma cena; inclusive, os dois capítulos chamam “A chegada”. Então a gente vê aí que a mulher toma ativamente a voz no romance. A ela é concedida pelo homem, mas ela toma a voz no romance. Esse homem é uma espécie de criador, como uma espécie de deus da criação, só que a mulher fala de maneira ativa no sétimo dia.

Laís: Vamos ouvir aqui o comecinho do primeiro capítulo, “A chegada”, que seria a versão do homem, o narrador principal da história. A edição citada aqui foi publicada pela Companhia das Letras.

Um copo de cólera (homem): E quando cheguei à tarde na minha casa lá no 27, ela já me aguardava andando pelo gramado, veio me abrir o portão pra que eu entrasse com o carro, e logo que saí da garagem subimos juntos a escada pro terraço, e assim que entramos nele abri as cortinas do centro e nos sentamos nas cadeiras de vime, ficando com nossos olhos voltados pro alto do lado oposto, lá onde o sol ia se pondo, e estávamos os dois em silêncio quando ela me perguntou “que que você tem?”, mas eu, muito disperso, continuei distante e quieto, o pensamento solto na vermelhidão lá do poente, e só foi mesmo pela insistência da pergunta que respondi “você já jantou?”…

Laís: Agora, vamos ouvir o comecinho do sétimo capítulo, que também se chama “A chegada”, mas que seria a versão feminina da história. Percebam as diferenças entre cada versão:

Um copo de cólera (mulher): E quando cheguei na casa dele lá no 27, estranhei que o portão estivesse ainda aberto, pois a tarde, fronteiriça, já avançava com o escuro, notando, ao descer do carro, uma atmosfera precoce se instalando entre os arbustos, me impressionando um pouco a gravidade negra e erecta dos ciprestes, e ali ao pé da escada notei também que a porta do terraço se encontrava escancarada, o que poderia parecer mais um sinal, redundante, quase ostensivo, de que ele estava à minha espera, embora o expediente servisse antes pra me lembrar que eu, mesmo atrasada, sempre viria, incapaz de dispensar as recompensas da visita, e eu de fato, pensativa, subi até o patamar no alto…

Laís: O homem diz que o sol estava se pondo. A mulher fala que a tarde já estava escura. Ele conta que, quando chegou, era aguardado pela mulher. Já ela diz que ele que estava à espera dela. Nesse trechinho, já dá pra perceber algumas diferenças entre as versões, as vozes, de cada um… Bom, mas vamos ver agora a situação do último livro comentado pela Lúcia. É um romance de 2014, Hosana na Sarjeta, escrito pelo Marcelo Mirisola.

Lúcia: Em Hosana na Sarjeta também uma relação amorosa com um sujeito muito complicado leva uma mulher ao suicídio, que é a Paulinha. Paulinha Denise. E a voz da Paulinha Denise é introduzida novamente no romance. A voz que, na verdade, ela não teve, que tudo foi contado pelo ponto de vista masculino e de uma forma bastante preconceituosa, cheia de julgamentos, mas, ao mesmo tempo, como uma pretensa forma de declarar que houve realmente um envolvimento amoroso entre esse narrador e a Paula Denise, que é uma mulher totalmente diferente dele. Ele é um escritor e ela é uma menina da periferia de São Paulo. E daí todos os preconceitos, ela seria brega, ela não seria instruída, mas, de qualquer maneira, houve uma relação verdadeira entre eles, segundo o que ele tenta narrar. A voz dela volta por um bilhete de suicídio. E esse bilhete de suicídio passa a ser um núcleo muito importante, um núcleo inclusive de transformação e de mudança do teor de reflexão desse sujeito dentro do romance.

Laís: Essas narrativas têm uma “moldura” parecida, são todas histórias em que um narrador homem conta o seu conflito amoroso, tentando silenciar a voz feminina, mas as vozes das mulheres conseguem escapar e aparecer na narrativa, cada uma de uma forma diferente.

Lúcia: Logicamente que esses romances que eu elegi não são os únicos. São romances em que eu reuni justamente o que eu chamei de uma linha de força dentro da Literatura brasileira, que é esse problema do homem que narra e que tenta ressignificar a sua vida e silenciar a mulher. A voz da mulher escapa e entra nessas narrativas. Ou pelas dúvidas do Bentinho, ou também porque o Paulo Honório está atormentado, ou pela revelação final e pelo tormento que o Riobaldo vai passar pelo resto da vida, ou retomando a narrativa, ou por meio de bilhetes, de carta suicida, como é a da Madalena. Quer dizer, a voz da mulher reaparece, ela entra, ela encontra espaço, no relato desse narrador masculino.

Laís: O silêncio do fim desse episódio está chegando, mas espero que essa conversa continue ecoando por aí. Você se lembra de mais algum livro que segue esse modelo? Ou de algum que apresenta essa questão do silenciamento a partir de outra perspectiva? Deixa um comentário pra gente. Estamos no Facebook, (facebook.com/oxigenionoticias – tudo junto e sem acento). E no Instagram e no Twitter também, basta procurar por “Oxigênio Podcast”.

Laís: O roteiro e a narração desse episódio foram feitos por mim, Laís Toledo. Os trabalhos técnicos foram feitos pelo Gustavo Campos e pelo Octávio Augusto, da rádio Unicamp. A edição do roteiro e a coordenação do Oxigênio são da Simone Pallone. As vozes dos personagens dos livros, na ordem em que aparecem, são de Oscar Freitas Neto, Bruna Alves Schievano e Diogo Rossi Ambiel Facini. Até o próximo “Leitura de Fôlego”!

Link para a matéria da Revista Cult (2018) “Quem é e sobre o que escreve o autor brasileiro”, com entrevista da professora Regina Dalcastagnè:

https://revistacult.uol.com.br/home/quem-e-e-sobre-o-que-escreve-o-autor-brasileiro/

Créditos de som:

“Calisson”, Confectionery.

“Minutes”, Pacha Faro.

“Lobo Lobo”, El Baul.

“Haena”, Cloud Harbor.

“Min”, Sketchbook 2.

“Milkwood”, The Cabinetmaker.

“Lemon and Melon”, Onesuch Village.

Todos do Blue Dot Studios (https://www.sessions.blue/)

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Neste terceiro episódio da Série Leitura de Fôlego, Lúcia Granja, professora do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, fala sobre sua pesquisa relacionada ao silenciamento da mulher em obras literárias brasileiras. Os autores estudados têm um perfil muito semelhante, são, em maioria, homens, brancos, e vivem no Rio de Janeiro e em São Paulo. Através de seus personagens homens, em geral os narradores das histórias que ao contarem sobre algum conflito pelo qual passam ou passaram, tentam omitir a voz da mulher em relação ao acontecimento narrado, sem muito sucesso. Lúcia vem estudando esse tema há quase 30 anos e neste podcast ela conta para a Laís Toledo, algumas passagens de obras importantes, e vai analisando justamente esse aspecto encontrado na literatura brasileira.

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Laís Toledo: Oi! Eu sou a Laís Toledo, e esse é um episódio da “Leitura de fôlego”, uma série sobre Literatura pro Oxigênio.

Laís: Um homem e uma mulher formam um casal. Por algum motivo, acontece um conflito entre eles, e esse relacionamento acaba. O homem, depois, resolve contar esse conflito. Com isso, ele procura dar um novo significado pra própria vida e, ao mesmo tempo, silenciar, omitir, a voz da mulher em relação ao que aconteceu entre os dois. Mas, de alguma forma, a voz dessa mulher consegue escapar e aparecer na história… A Lúcia Granja, que conversa com a gente nesse episódio, percebeu que esse modelo de narrativa se repete em algumas importantes obras literárias brasileiras. Partindo do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, a nossa conversa passa por Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Raduan Nassar até chegar a um escritor contemporâneo, o Marcelo Mirisola. A Lúcia é professora e pesquisadora do Instituto de Estudos da Linguagem, o IEL da Unicamp. Ela pesquisa principalmente a obra do Machado de Assis; em especial, as crônicas desse escritor e as relações entre Literatura e Jornalismo na produção dele.

Laís: A Lúcia propõe essa análise sobre o silenciamento feminino como uma linha de força na ficção brasileira. Ou seja, como um tema recorrente. Ela desenvolveu essa análise a partir do conhecimento que tem sobre o Machado de Assis e a partir também de pesquisas didáticas que ela vem fazendo há quase 30 anos para oferecer disciplinas, na universidade, sobre Literatura brasileira. Pra começar a conversa, então, eu pedi pra Lúcia explicar essa leitura que ela faz.

Lúcia Granja: Eu acabei percebendo que existe pelo menos um modelo inicial que vai se desdobrar no século XX em termos de romance: um homem que narra o conflito amoroso (um homem, portanto, que é um narrador personagem), que, depois de ter vivido uma situação traumática de conflito amoroso, vai falar desse conflito e isso seria o romance. Portanto, é um romance autobiográfico. E, nesse caso, existe um processo duplo, que é o processo de silenciamento da mulher, que é o par amoroso desse homem, mas às vezes essa mulher, de alguma maneira, ela recupera um espaço de fala dentro desse relato, que seria o relato unilateral de um homem. Isso vai se transformando ao longo do século XX e vai mudando de romance para romance.

Laís: Para essa análise, a Lúcia selecionou alguns romances, entre outros que poderiam ser incluídos nesse modelo. Eu pedi pra ela comentar sobre essas escolhas.

Lúcia: Eu pensei em Dom Casmurro como um paradigma de início, porque Dom Casmurro inaugura o século XX. Dom Casmurro chegou ao Brasil em janeiro de 1900, embora ele tenha sido publicado em 1899 pelos editores Garnier em Paris, ele chegou ao Rio de Janeiro em janeiro de 1900. Então, a partir de Dom Casmurro, o paradigma se estende pra Graciliano Ramos, São Bernardo, depois, de uma maneira muito mais complexa, Grande Sertão: Veredas, mais tarde, Um copo de cólera e, depois, eu acabei abrindo para um romance absolutamente contemporâneo, de um escritor que se chama Marcelo Mirisola, e que se chama Hosana na sarjeta, o romance. Então, a ideia é, na realidade, falar desse silenciamento feminino e de como isso, no conflito amoroso, cria uma linha de narrativas dentro da Literatura brasileira. Então, acho que uma linha de força, porque nós estamos diante de narradores homens que narram o conflito amoroso. E por que que é o homem que narra o conflito amoroso?

Lúcia: Aí eu vou pra um dado empírico que é o seguinte. Tem uma professora da UnB que tem feito muita pesquisa sobre quem são os escritores brasileiros. Essa professora é a Regina Dalcastagné. Ela tem feito uma pesquisa extensiva, de romances entre 1990 e 2004. Na verdade, eu estou com dados um pouco antigos da pesquisa dela, porque a pesquisa continuou, mas eu acho que as porcentagens não mudaram muito, não. E a pesquisa que ela fez mostra que os autores brasileiros (eu acho que não só brasileiros, mas ela está focada nos brasileiros) são na maioria brancos (90%), homens (70%) e a maioria deles mora no Rio de Janeiro e em São Paulo (arredondando 50% no RJ e 20% em SP), desses que são homens e brancos, que daria 70%.

Laís: Para quem quiser conhecer um pouco mais sobre a pesquisa da professora Regina Dalcastagnè, eu vou deixar na descrição do episódio o link de uma entrevista que ela deu em 2018 para a Revista Cult, chamada “Quem é e sobre o que escreve o autor brasileiro”. Bom, mas voltando para o tema do episódio, a Lúcia partiu desses dados sobre o perfil do escritor brasileiro – homem, branco e do eixo Rio-São Paulo – para desenvolver a sua análise.

Lúcia: É um dado muito interessante da Literatura contemporânea, mas que não pertence apenas à Literatura contemporânea. Quer dizer, a adoção do ponto de vista masculino por esse narrador que narra o conflito amoroso tem por detrás a própria autoria masculina. Então, foi pensando nisso também que a pesquisa dela me deu forças para acreditar que existe uma relação entre essas duas coisas, entre autoria, entre criação de um relato ficcional autobiográfico e a projeção, dentro desse relato, de dados da nossa sociedade, que são dados evidentes. A nossa sociedade é uma sociedade onde a organização privada da família foi estruturada à moda paternalista, de maneira paternalista, onde existe um chefe de família que é responsável, que se dedica a, enfim, organizar tudo que acontece dentro dessa família, com dominação. Então, aí também evidentemente, além da dominação que submete os dependentes, existe uma dominação masculina, que impera no seio da família. E de uma certa maneira, dentro das relações entre homem e mulher, por mais que elas tenham mudado ao longo do tempo.

Laís: Pra gente entender um pouco melhor como essas personagens femininas são silenciadas (e também como as vozes delas acabam aparecendo de alguma maneira), eu pedi pra Lúcia começar apresentando o caso de Dom Casmurro, do Machado de Assis. Nesse episódio, a gente vai falar um pouco mais sobre esse romance e, depois, passar mais rápido pelas variações desse modelo de narrativa nas outras obras selecionadas pela Lúcia.

Laís: O enredo de Dom Casmurro é bastante conhecido, mas, só pra lembrar rapidinho: o livro é narrado por um homem, o Bento Santiago (também chamado de Bentinho ou Dom Casmurro), que, quando já está mais velho, resolve escrever sobre a própria vida. Ele fala das dificuldades que teve para se casar com a sua vizinha Capitolina, a Capitu. E, depois do casamento, ele acha o próprio filho muito parecido com seu melhor amigo e desconfia que a Capitu o tenha traído.

Lúcia: Em Dom Casmurro, o que que acontece? Os ciúmes crescentes do Bentinho, não vamos aqui discutir, porque seria longo demais, a culpa da Capitu, se a Capitu traiu ou não traiu o Bentinho, mas os ciúmes crescentes, quer a Capitu tenha traído ou não, levam-no a tomar decisões unilaterais. Isso que eu acho que é o mais importante dentro dessa questão do silêncio e do silenciamento.

Laís: Então, vamos ver mais de perto o momento em que o Bentinho comunica para Capitu essa decisão unilateral dele, a decisão de colocar um fim no relacionamento, exilando a Capitu na Europa. Essa cena aparece no capítulo 138 do livro, chamado “Capitu que entra”.

Lúcia: É um momento crucial em que ele já está decidido a acabar com aquilo. Bom, ele tinha tentado dar café envenenado pro filho, ele mesmo estava pensando em ingerir aquele veneno que ele havia comprado no dia anterior, mas tem um lance muito interessante, que ele vai dizer assim pra gente:

Dom Casmurro (narrador): Quando levantei a cabeça, dei com a figura de Capitu diante de mim. Eis aí outro lance, que parecerá de teatro…

Lúcia: Essa cena toda que vai se passar entre eles é muito teatral. Aí, ele vai dizer, a Capitu queria saber o que que estava acontecendo, tinha um conflito ali, a criança estava chorando. Aparentemente, ela foi atraída pro escritório do Bentinho pelo choro do filho, e ele vai dizer assim, o Bentinho, narrador, narrando seu conflito amoroso:

Dom Casmurro (narrador): Desta vez ao dar com ela, não sei se era dos meus olhos, mas Capitu pareceu-me lívida. Seguiu-se um daqueles silêncios, a que, sem mentir, se podem chamar de um século, tal é a extensão do tempo nas grandes crises.

Lúcia: Quer dizer, o silêncio é a expressão da crise pro Bentinho. E aí ele continua:

Dom Casmurro (narrador): Capitu recompôs-se, disse ao filho que fosse embora, e pediu-me que lhe explicasse…

Bentinho (personagem): Não há o que explicar.

Capitu: Há tudo; não entendo as tuas lágrimas nem as de Ezequiel. Que houve entre vocês?

Laís: Ezequiel é o nome do filho deles; nome que foi escolhido em homenagem ao melhor amigo do Bentinho, que se chamava Ezequiel Escobar.

Lúcia: Aí, então, o Bentinho vai perguntar se ela não ouvira o que ele disse, e ela vai responder que ouviu justamente o choro, rumor de palavras, tal, e o Bentinho vai finalmente jogar na cara dela que acha que o Ezequiel não é seu filho. Aí vem essa parte bem teatral da cena:

Dom Casmurro (narrador): Grande foi a estupefação de Capitu, e não menor a indignação que lhe sucedeu, tão naturais ambas que fariam duvidar as primeiras testemunhas de vista do nosso foro […]. Mas, haja ou não testemunhas alugadas, a minha era verdadeira; a própria natureza jurava por si, e eu não queria duvidar dela.

Lúcia: Ele está falando da semelhança que ele alega existir entre o Ezequiel e o Escobar.

Dom Casmurro (narrador): Assim que, sem atender a linguagem de Capitu, aos seus gestos, à dor que a retorcia, a coisa nenhuma, repeti as palavras ditas duas vezes com tal resolução que a fizeram afrouxar.

Lúcia: Então sem atender a toda aquela expressão da Capitu, que era uma expressão muito teatral: a linguagem, os gestos, a dor que a retorcia. Então, ela está falando, ela está se mexendo, ela está se contorcendo de dor. Quer dizer, tem uma expressão da Capitu por todos os meios, ele apenas repete “Ezequiel não é meu filho”. E aí, justamente, quando a Capitu consegue se recompor, ela vai lhe perguntar o que é que lhe deu tal ideia.

apitu: Que é que lhe deu agora tal convicção? Ande, Bentinho, fale! Fale! Despeça-me daqui, mas diga tudo primeiro.

Bentinho (personagem): Há coisas que não se dizem.

Capitu: Que se não dizem só metade; mas já que disse metade, diga tudo.

Dom Casmurro (narrador): Pedi-lhe ainda uma vez que não teimasse.

Capitu: Não, Bentinho, ou conte o resto, para que eu me defenda, se você acha que tenho defesa, ou peço-lhe desde já a nossa separação: não posso mais!

Bentinho (personagem): A separação é coisa decidida. […] Era melhor que a fizéssemos por meias-palavras ou em silêncio; cada um iria com a sua ferida.

Lúcia: Da parte dele, ele quer resolver tudo em silêncio. Nem que os gestos dela, que a dor dela, que as palavras, que o que ela diz naquele momento, seja grande, seja expressivo, no momento mais dramático da relação deles, ele fica em silêncio e diz isso pra ela: “a separação é coisa decidida, e há coisas que não se dizem” e ela vai dizer “que não se dizem pela metade”. Mas o que que acontece? Embora ela exija dele a explicação, essa explicação não vem. Ou vem por meias-palavras, como ele mesmo vai dizer depois. Significa que o silêncio dele impõe à Capitu um silenciamento. E a separação é coisa decidida, mas não é só a separação que era coisa decidida, a forma da separação também era coisa decidida. Ele exila a Capitu. A Capitu vai morar na Suíça, ele finge para os contemporâneos dele que ele vai todos os anos à Europa ver a família, e não. Quer dizer, existe, na verdade, tanto uma atitude e uma decisão unilateral dele e que ele impõe da forma mais silenciosa possível quanto a condenação ao exílio que ele também promove em relação à Capitu e ao filho que ele supõe que não seja dele.

Laís: Então, quando o Bentinho se nega a conversar com a Capitu sobre a suposta traição dela e já decide como vai ser a separação dos dois, como se dissesse “esse caso não é da sua conta”, ele estava silenciando a Capitu; ou seja, o silêncio dele impediu que ela se manifestasse naquela situação de crise no relacionamento deles… Ah, acho que é bom comentar que narrador e autor são coisas diferentes. Quer dizer, essa situação de silenciamento feminino não significa que o Machado (ou os outros autores que também vão aparecer no episódio) estivesse automaticamente defendendo uma sociedade patriarcal; ele estava falando dessa sociedade. E eu acho que é até possível dizer que essa situação foi criticada, já que, apesar do silenciamento imposto com sucesso nessa cena do capítulo 138, a Capitu, ao longo do livro, aparece de forma inclusive poderosa, nas dúvidas que o Bentinho narrador deixa escapar, quando se lembra do seu passado e conta a sua história. Ele – que decidiu, sozinho, exilar a Capitu – parece querer convencer o leitor de que foi traído, mas, ao mesmo tempo, parece que ele quer convencer a si próprio de que tomou a decisão correta. Através dessas dúvidas de um velho deprimido, casmurro, é como se a voz, a versão da Capitu aparecesse no romance.

Laís: Bom, acho que deu para ter uma ideia da leitura da Lúcia sobre a questão do silenciamento feminino em Dom Casmurro, o romance que ela escolheu como um ponto de partida para observar essa questão, que aparece e reaparece na Literatura brasileira. Agora, vamos avançar uns 30 anos e ver o caso de São Bernardo, um romance do Graciliano Ramos, publicado pela primeira vez em 1934. Esse livro é narrado pelo Paulo Honório, que, assim como Bentinho, quando está mais velho, escreve um livro sobre sua própria história. Ele conta as dificuldades que passou na vida e os meios (até ilegais e violentos) que ele usou para comprar a sua fazenda, chamada justamente São Bernardo. O Paulo Honório conta também sobre o seu casamento com a Madalena. Ela seria a mulher silenciada nessa narrativa.

Lúcia: Em São Bernardo, nós vamos ter uma comunicação explícita com a forma de Dom Casmurro. Então, esse narrador atormentado, que conta, que faz uma autobiografia, porque ele precisa aprender alguma coisa a respeito da história dele por meio daquela autobiografia. E ali ele vai mostrar como, de novo, o ciúme e, na verdade, o machismo dele foram protagonistas no silenciamento progressivo que ele impôs à Madalena, do qual ela sai, não como a Capitu, de uma forma submissa, mas ela sai pelo suicídio. Quer dizer, ela impõe-se um silenciamento que é um silenciamento que não pode calar, porque, depois que uma pessoa se suicida, a gente tem que falar sobre aquilo, sobretudo se esse sujeito está no centro da atitude que a Madalena tomou. Então, ela vive uma relação com ele, ele é um fazendeiro, controlador, dentro desse esquema patriarcal da sociedade brasileira, e com atitudes paternalistas em relação à mulher e à família, e ele vai impor, então, esse silenciamento a ela, por meio da opressão. O Bentinho vai ficando deprimido, ele não, ele se torna muito agressivo, ele oprime realmente.

Laís: Agora, vamos avançar mais um pouco no tempo, para 1956, quando o João Guimarães Rosa publicou o livro Grande Sertão: Veredas, narrado pelo ex-jagunço Riobaldo. Esse personagem conta a história da sua vida para um senhor e fala bastante sobre o amor que sentia por outro jagunço, chamado Diadorim. Mas, perto do fim do livro, o Riobaldo revela para esse senhor que o Diadorim era, na verdade, uma mulher. O Riobaldo só descobre isso depois da morte do Diadorim, e o leitor só vai ficar sabendo disso no final do livro.

Lúcia: Depois um outro narrador que vai fazer um relato autobiográfico para tentar ressignificar a sua vida é o próprio Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas. Ali, qual que é a questão? Tem várias questões ligadas ao silenciamento nesse romance. Primeiro, o amor deles em vida, dele e do Diadorim, que, na verdade, era Diadorina, ele ficou não dito, ficou não expresso, não realizado, ele ficou silenciado. Pelo menos é o que ele conta pra gente no fim.

Laís: Bom, essa é uma questão relacionada ao silenciamento nesse livro, mas a Lúcia destacou outros pontos.

Lúcia: Depois, a gente vê que o silenciamento é muito mais complexo, porque ele é um silenciamento da própria mulher, por vontade do pai da Diadorina, que era o Joca Ramiro, e por obediência dessa filha ao pai. Não se sabe se só por obediência da filha ao pai ou se realmente por uma vontade de adotar uma identidade masculina. Então, a gente tem ali o silenciamento da mulher que já foi praticado, depois, o silenciamento dessa mulher dentro de uma vida inteira como jagunça e o silenciamento da relação amorosa dos dois que só vai se revelar com a descoberta da verdadeira identidade de gênero dela, depois da morte. Então, é um caso bastante complexo também. A gente pode talvez dizer que tudo fica circunscrito ao não dito. As coisas acontecem de maneira que jamais elas são explicitamente declaradas, nem mesmo a própria identidade da pessoa numa relação tão próxima, como a Diadorina tem, e o Diadorim, portanto, tem com o Riobaldo; e depois o que acontece é que essa relação é totalmente sufocada. Daí o relato de 600 páginas, que equivaleria a um relato de 3 dias, em que ele tenta, como narrador masculino fazendo um relato autobiográfico, colocar em ordem a vida e a cabeça dele.

Laís: O Grande Sertão: Veredas, como a Lúcia disse, é um romance longo e a sua leitura não é simples. A linguagem do livro é experimental, o enredo é cheio de personagens, e não segue uma ordem linear, ele segue uma ordem da memória. A própria questão do silêncio e do silenciamento é mais complexa nesse caso e poderia ser desdobrada. Mas agora vamos passar para o penúltimo livro que será comentado neste episódio, um livro bem mais curto, com cerca de 80 páginas: Um copo de cólera, do Raduan Nassar. Um copo de cólera é uma novela, o que, dizendo de forma simples, é um tipo de texto maior que um conto e menor que um romance. Ele foi publicado pela primeira vez em 1978 e é centrado no relato de um encontro e de uma briga de um casal.

Lúcia: No Copo de cólera, existe um esquema aparentemente cíclico, são 7 capítulos e esses 7 capítulos formariam um ciclo de vida. Se a gente for ver, tem uma relação com o Gênesis, com cada dia da criação. E no sétimo dia aparece a voz da mulher. Quer dizer, esse ciclo é ao mesmo tempo fechado e interrompido, porque a mulher retoma a palavra no sétimo capítulo. Tudo que é contado no primeiro capítulo, e a história que se desenrola durante os seis capítulos contados pela voz masculina (que também está ressignificando aquela relação e contando na primeira pessoa), no sétimo capítulo vai, aparentemente, ser recontado pela voz feminina. Então, ela vai justamente recontando tudo o que a cena inicial do primeiro capítulo, ela aparece refeita pelo ponto de vista feminino no sétimo capítulo. É exatamente a mesma cena; inclusive, os dois capítulos chamam “A chegada”. Então a gente vê aí que a mulher toma ativamente a voz no romance. A ela é concedida pelo homem, mas ela toma a voz no romance. Esse homem é uma espécie de criador, como uma espécie de deus da criação, só que a mulher fala de maneira ativa no sétimo dia.

Laís: Vamos ouvir aqui o comecinho do primeiro capítulo, “A chegada”, que seria a versão do homem, o narrador principal da história. A edição citada aqui foi publicada pela Companhia das Letras.

Um copo de cólera (homem): E quando cheguei à tarde na minha casa lá no 27, ela já me aguardava andando pelo gramado, veio me abrir o portão pra que eu entrasse com o carro, e logo que saí da garagem subimos juntos a escada pro terraço, e assim que entramos nele abri as cortinas do centro e nos sentamos nas cadeiras de vime, ficando com nossos olhos voltados pro alto do lado oposto, lá onde o sol ia se pondo, e estávamos os dois em silêncio quando ela me perguntou “que que você tem?”, mas eu, muito disperso, continuei distante e quieto, o pensamento solto na vermelhidão lá do poente, e só foi mesmo pela insistência da pergunta que respondi “você já jantou?”…

Laís: Agora, vamos ouvir o comecinho do sétimo capítulo, que também se chama “A chegada”, mas que seria a versão feminina da história. Percebam as diferenças entre cada versão:

Um copo de cólera (mulher): E quando cheguei na casa dele lá no 27, estranhei que o portão estivesse ainda aberto, pois a tarde, fronteiriça, já avançava com o escuro, notando, ao descer do carro, uma atmosfera precoce se instalando entre os arbustos, me impressionando um pouco a gravidade negra e erecta dos ciprestes, e ali ao pé da escada notei também que a porta do terraço se encontrava escancarada, o que poderia parecer mais um sinal, redundante, quase ostensivo, de que ele estava à minha espera, embora o expediente servisse antes pra me lembrar que eu, mesmo atrasada, sempre viria, incapaz de dispensar as recompensas da visita, e eu de fato, pensativa, subi até o patamar no alto…

Laís: O homem diz que o sol estava se pondo. A mulher fala que a tarde já estava escura. Ele conta que, quando chegou, era aguardado pela mulher. Já ela diz que ele que estava à espera dela. Nesse trechinho, já dá pra perceber algumas diferenças entre as versões, as vozes, de cada um… Bom, mas vamos ver agora a situação do último livro comentado pela Lúcia. É um romance de 2014, Hosana na Sarjeta, escrito pelo Marcelo Mirisola.

Lúcia: Em Hosana na Sarjeta também uma relação amorosa com um sujeito muito complicado leva uma mulher ao suicídio, que é a Paulinha. Paulinha Denise. E a voz da Paulinha Denise é introduzida novamente no romance. A voz que, na verdade, ela não teve, que tudo foi contado pelo ponto de vista masculino e de uma forma bastante preconceituosa, cheia de julgamentos, mas, ao mesmo tempo, como uma pretensa forma de declarar que houve realmente um envolvimento amoroso entre esse narrador e a Paula Denise, que é uma mulher totalmente diferente dele. Ele é um escritor e ela é uma menina da periferia de São Paulo. E daí todos os preconceitos, ela seria brega, ela não seria instruída, mas, de qualquer maneira, houve uma relação verdadeira entre eles, segundo o que ele tenta narrar. A voz dela volta por um bilhete de suicídio. E esse bilhete de suicídio passa a ser um núcleo muito importante, um núcleo inclusive de transformação e de mudança do teor de reflexão desse sujeito dentro do romance.

Laís: Essas narrativas têm uma “moldura” parecida, são todas histórias em que um narrador homem conta o seu conflito amoroso, tentando silenciar a voz feminina, mas as vozes das mulheres conseguem escapar e aparecer na narrativa, cada uma de uma forma diferente.

Lúcia: Logicamente que esses romances que eu elegi não são os únicos. São romances em que eu reuni justamente o que eu chamei de uma linha de força dentro da Literatura brasileira, que é esse problema do homem que narra e que tenta ressignificar a sua vida e silenciar a mulher. A voz da mulher escapa e entra nessas narrativas. Ou pelas dúvidas do Bentinho, ou também porque o Paulo Honório está atormentado, ou pela revelação final e pelo tormento que o Riobaldo vai passar pelo resto da vida, ou retomando a narrativa, ou por meio de bilhetes, de carta suicida, como é a da Madalena. Quer dizer, a voz da mulher reaparece, ela entra, ela encontra espaço, no relato desse narrador masculino.

Laís: O silêncio do fim desse episódio está chegando, mas espero que essa conversa continue ecoando por aí. Você se lembra de mais algum livro que segue esse modelo? Ou de algum que apresenta essa questão do silenciamento a partir de outra perspectiva? Deixa um comentário pra gente. Estamos no Facebook, (facebook.com/oxigenionoticias – tudo junto e sem acento). E no Instagram e no Twitter também, basta procurar por “Oxigênio Podcast”.

Laís: O roteiro e a narração desse episódio foram feitos por mim, Laís Toledo. Os trabalhos técnicos foram feitos pelo Gustavo Campos e pelo Octávio Augusto, da rádio Unicamp. A edição do roteiro e a coordenação do Oxigênio são da Simone Pallone. As vozes dos personagens dos livros, na ordem em que aparecem, são de Oscar Freitas Neto, Bruna Alves Schievano e Diogo Rossi Ambiel Facini. Até o próximo “Leitura de Fôlego”!

Link para a matéria da Revista Cult (2018) “Quem é e sobre o que escreve o autor brasileiro”, com entrevista da professora Regina Dalcastagnè:

https://revistacult.uol.com.br/home/quem-e-e-sobre-o-que-escreve-o-autor-brasileiro/

Créditos de som:

“Calisson”, Confectionery.

“Minutes”, Pacha Faro.

“Lobo Lobo”, El Baul.

“Haena”, Cloud Harbor.

“Min”, Sketchbook 2.

“Milkwood”, The Cabinetmaker.

“Lemon and Melon”, Onesuch Village.

Todos do Blue Dot Studios (https://www.sessions.blue/)

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