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Dudu Bertholini: a moda precisa derrubar padrões

 
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O estilista e apresentador fala sobre mudanças urgentes no mundo da moda, questiona padrões e relembra a descoberta da sua sexualidade Dudu Bertholini é uma das figuras mais icônicas da moda brasileira e, mais recentemente, da televisão. Ele nasceu em São Paulo, mas passou a adolescência em Limeira, no interior do estado. Voltou para a capital para cursar a faculdade de moda, mercado que o consagrou. Já atuou como stylist, figurinista, estilista e diretor criativo. Em 2003, fundou com uma amiga a própria marca, a Neon, que em quase uma década de existência o projetou como um dos criadores mais inovadores da moda nacional. Além da carreira no mundo da moda, Dudu tornou-se também um comunicador. Ele integrou a bancada do Amor & Sexo, programa da TV Globo que exibiu sua última temporada no ano passado, onde pôde se posicionar com liberdade sobre temas ainda pontiagudos como sexualidade e gênero. E acaba de estrear a segunda temporada de Nós, os fashionistas, um série no canal FashionTV na qual ele entrevista colegas de profissão sobre criatividade e documenta a moda brasileira. Em conversa com o Trip FM, Dudu fala sobre a descoberta da sexualidade, seu casamento que reuniu mais de 300 convidados em uma videochamada e os desafios que a moda vai enfrentar com a pandemia. Ouça o programa no Spotify, no play abaixo ou leia a entrevista completa. [AUDIO=https://p.audio.uol.com.br/trip/2020/6/DuduBertolini.mp3; IMAGE=https://revistatrip.uol.com.br/upload/2020/06/5ed956056be25/1009x530x960x540x13x-4/dudu-bertholini-quarentena-covid-tripfm-social.jpg] Trip. Como está a vida de casado? Dudu Bertholini. Estou muito feliz com a minha vida de casado, em lua de mel. Para nós foi uma data simbólica porque, além de fazer o casamento, a gente entendeu isso como um momento super importante de troca de afeto e de conexão entre pessoas que a gente ama muito. Em nenhum momento esquecemos toda a dor e o desafio que o mundo está passando à nossa volta, mas a gente quis justamente que fosse o momento de troca de carinho, de reafirmar o amor. E diante de pessoas que são super importantes para a gente – que no nosso caso são 300 – mas, acredite, os convites ficaram prontos dois dias antes, então não conseguimos convidar metade dos amigos que a gente queria, que eram importantes, acredita? Você é muito animado e muito alegre. Qual é o segredo? Eu procuro bastante essa animação na minha vida. Mas vou confessar que essa é uma semana em que estou me sentindo super fragilizado, mais sensível, mais vulnerável, por causa de toda essa loucura que está rolando no mundo à nossa volta. Acho até que no momento desse isolamento, conseguir manter a nossa energia elevada e segurar a própria onda já é uma grande contribuição. E tudo bem para quem não está conseguindo, tá? Tem muita gente que não está conseguindo depois de três meses de confinamento. Mas eu acho que é um exercício diário, de ver o lado bom das coisas, de ter um otimismo sem alienação. Me lembro de acompanhar a sua carreira e você estava sempre, de certa forma, nos bastidores. Claro que você aparecia nos seus desfiles e nas revistas de moda, já era uma figura pública. Mas é outra coisa você estar na maior vitrine do Brasil, botar a cara num programa como o Amor & Sexo, e expor sua visão de mundo. Toda vez que eu assistia ao programa prestava atenção na delicadeza da sua postura, que, no melhor sentido da palavra, é uma coisa educada, refinada, sem fugir da contundência. E esses temas ligados à sexualidade, questões de gênero, ainda são tabus no Brasil, onde as pessoas são agredidas e assassinadas por causa disso. Você precisou pensar nisso, teve ajuda da equipe de profissionais, ou simplesmente foi lá e deixou rolar? Foi uma série de reflexões. Quando a gente passa a atuar numa plataforma que tem tanto alcance e visibilidade, a nossa responsabilidade aumenta muito. "Grandes poderes vêm com grandes responsabilidades" e ser um comunicador, ser um criador de imagem, ser o interlocutor de qualquer mensagem hoje, traz mais responsabilidade do que nunca. O tempo presente é perfeito para entendermos o impacto das nossas palavras, das nossas mensagens. E estar num veículo poderoso como a Rede Gobo aumenta essa responsabilidade. No entanto, o convite do Antonio Amancio e da Fernanda Lima, parceiros e amigos que me deram essa oportunidade, já foi porque eles entendiam que a minha visão de mundo estava alinhada com o que eles acreditavam também. LEIA TAMBÉM: Fernanda Lima questiona os próprios privilégios, empresta sua voz a diferentes causas e lida com as consequências dessas escolhas O processo todo de construção do programa é bem interdisciplinar. As nossas reuniões de pauta eram com todas as pessoas da equipe e, entre os jurados, a gente tinha uma troca enorme. O que eu aprendi, o que eu aprofundei por causa do discurso, da reflexão. Imagine sentar numa bancada com Milly Lacombe, que é uma das pensadoras mais potentes que a gente tem na contemporaneidade, com Djamila Ribeiro. Os meus amigos Edu Sterblitch, José Loreto, Mari Santos, são geniais. Cada um à sua maneira, cada um no seu recorte. A Regina Navarro Lins aprofundou a minha visão sobre o relacionamento e sobre o mundo. Tudo isso elevou o nível da discussão e da conversa, e foi de grande aprendizado. Mas já estava alinhado com minha maneira de ver o mundo. Eu agradeço demais quando você coloca essa delicadeza, a palavra é muito bonita. Ela não é fragilidade, e não tem nada errado com fragilidade, mas parece que ela é diferente. A gente tem que pensar como tornar acessíveis informações relevantes, porque se o discurso é complicado, isso reforça ainda mais a ideia de que esse problema não é com as pessoas. "A LGBTQfobia não é um problema meu porque eu não sou LGBTQ". Não, pelo contrário! A transfobia e homofobia surgiram de você, que não é LGBTQ. Assim como o racismo é um problema criado pela branquitude e não pelos negros. Então a gente conseguir fazer com que esse discurso se torne mais próximo, mais presente e mais acessível. E ser acessível não significa ser mais raso, é o nosso grande desafio numa plataforma como a Globo. [QUOTE=1086] A moda é um setor que está sofrendo demais nesse momento. Eu quero ouvir de você, que cresceu profissionalmente dentro da moda e hoje é também professor, sobre o que está acontecendo com esse campo. A maioria dos setores está sofrendo muito e drasticamente com a pandemia da Covid-19, e a moda sem dúvida é um dos que estão sendo mais questionados e abalados diante dessa transformação. Porém, a gente está diante da maior oportunidade de mudança verdadeira que a moda já teve na história recente. A moda já não estava bem. A ideia de que estava tudo bem com a moda tem que ser combatida. Estávamos num processo de aceleração cada vez maior, produzindo cada vez mais roupas, que estavam sendo liquidadas e descartadas com cada vez mais rapidez. Saímos de duas para cinco coleções por ano: é verão, inverno, alto verão, resort, enfim, cada vez mais demanda, num ciclo no qual liquidamos as roupas de verão antes da primeira flor desabrochar na primavera e vendemos roupas de inverno com um calor de 35 graus na rua. E mais uma vez privilegiando estruturas hegemônicas: marcas grandes, que se dispunham através do marketing a fazer uma conversa com diferentes consumidores, mas que no fundo só visavam a venda. Se apropriando de discursos importantes do momento, correndo atrás para agradar ao público alvo, mas sem ser uma parte positiva da mudança. Tudo isso já estava acontecendo. E há também a nossa compreensão de que a moda não é sobre roupas. A moda é sobre pessoas e já não fazia mais sentido sacrificar pessoas que ganham super pouco, trabalham em condições análogas à escravidão, e poluindo rios drasticamente, para que a gente compre uma calça jeans a preço de banana, alimentando um ciclo super predatório. Com a pandemia, todo mundo entrou num momento de recessão econômica, com exceção das farmácias ou serviços digitais, mas todo mundo quer pôr a mão na consciência e entender quais eram as suas prioridades. Vamos ver ainda a quebra de grandes instituições, de marcas de moda, de modelos de negócios que não vão sobreviver à pandemia e que, diante de uma cobrança maior do consumidor por produtos que estejam alinhados aos seus valores, não vão aguentar a onda. É um novo panorama, que não é novo, já estava acontecendo, mas agora está se acelerando e especificando. Vai ter uma ascensão de marcas menores e de designers mais autorais. Um incentivo ao que é local ou brasileiro, porque a gente vai para uma recessão econômica e tem que valorizar nossa mão de obra. A gente vai ter medo de produtos que venham de fora. Vai ter uma série de urgências de valorizar o que é feito pela gente, e aí a gente vai ter uma cobrança muito maior desses consumidores por produtos mais responsáveis, mais éticos, mais transparentes, mais justos e que de forma nenhuma ratifiquem mensagens homofóbicas, transfóbicas, racistas, misóginas, classistas. Então nós estamos no meio de uma revolução. Eu estou totalmente de acordo e torço há muitos anos para que essa revolução aconteça. Mas eu tenho uma filha adolescente, e isso me dá uma condição de examinar a vida real muito de perto. Felizmente ela está formando uma consciência bem legal e tem, por exemplo, uma visão sobre o caráter nocivo do fast fashion, fala sobre isso, pensa sobre isso. Mas na hora que ela passa na frente de um lugar desse, é como se ela fosse abduzida por forças maiores do que a própria consciência, e ela fica completamente balançada. Então a minha pergunta é a seguinte: isso tudo o que você fala faz um sentido absoluto dentro da lógica do bom senso, mas você acha que essa lógica consegue vencer a força avassaladora do fast fashion, por exemplo? Se não conseguir vencer esse sistema, nem mundo a gente vai ter para que outras realidades surjam. Basta da atrocidade predatória que vem acontecendo ano após ano. Mesmo com o crescimento de uma consciência mais sustentável, ainda vivemos um momento no qual os malefícios são muito maiores do que os benefícios. A Covid-19 pegou processos que poderiam demorar anos para acontecer, e está nos colocando diretamente diante dessas questões. E o mundo vai encontrar formas de fazer isso acontecer, eu acho que isso é inevitável. Todos nós passamos pelo mesmo paradoxo que a sua filha, a gente está sujeito a isso e eu me incluo. Por mais que eu tenha uma consciência sustentável, holística, colaborativa, eu consumo outros produtos que não vêm de boas procedências. Eu conheço muitas pessoas que já estão, de uma forma que eu não chamo de radical, mas de absurdamente legítima com seus discursos, não fazendo concessões. Eu deixo muito claro: o mais importante é que a gente seja verdadeiro com aquilo que a gente é. Eu estou numa trajetória, atendo grandes marcas do mercado que também não estão dentro dessa consciência, ou que estão parcialmente. Eu não compro tudo de produtores locais, fresco, orgânico, não estou nesse lugar ainda. E me vejo nesta contradição por vezes. A dualidade que a sua filha enfrenta é a dualidade que o mundo enfrenta. A gente diz: "Eu não compactuo com os meios de produção que poluem o mundo", mas eu quero muito comprar esse jeans que custa menos de 10 reais, sendo que a gente sabe que um par de calça jeans consome uma média de 11 mil litros de água potável para ser feita, e que o azul dessa calça jeans possivelmente tingiu rios que nunca mais vão ser recuperados. Ser legítimo, aproximar os nossos discursos das nossas atitudes, é o grande desafio do mundo. Mas também de um lado otimista, eu vejo essas novas gerações, da qual a sua filha faz parte, já alinhadas com a contemporaneidade. Jovens de 10 até 20 anos, super mais conscientes, muito mais à vontade com as questões de gênero, de sexualidade. Já não se perguntam, já não cobram de si a heterossexualidade ou demonizam a homossexualidade ou bissexualidade. Vejo essa geração usando muito mais roupas vintage, roupas de brechó, roupas usadas ou mesmo upcycling, que é quando se pega uma peça que já existe e interfere nessa peça com design para agregar valor a ela. Eu vejo essa nova geração super proativa nesse sentido, o que me dá muita esperança para os passos que vem pela frente. LEIA TAMBÉM: Como o coronavírus infectou o modo como consumimos Não dá para falar de cultura sem passar pela moda, que é um vetor de cultura gigantesco. Ao mesmo tempo, quando se olha para mazelas da sociedade, tem uma contribuição muito grande da moda e da mídia na construção de padrões e de preconceitos. Nesse momento, o mundo inteiro está se repensando, sobre estética, sobre a necessidade de consumo e sobre a necessidade de se mostrar de uma determinada maneira para o outro. Que transformação vai acontecer? A moda sai fortalecida ou enfraquecida de um trauma como uma pandemia? Acabar com quaisquer padrões é um grande objetivo da moda do presente e do futuro. Todo padrão é excludente por natureza, porque ele exclui quem não pertence a ele. Todo mundo é oprimido e sofre diante dos padrões, mesmo quem está no topo dele, mas claro que os mais oprimidos sofrem muito mais. Quando a gente entende uma interseccionalidade de raça, cor, corpo, de todas essas características, quanto mais elas se somam, mais dura é essa opressão. E, mesmo para quem atende a estes padrões, a cobrança em se manter dentro deles é uma coisa super cruel. E aí justamente a gente começa entender que a moda é um vetor muito complexo e amplo, e que depende muito da nossa visão para entender qual o resultado. Se a gente começa a realmente cobrar uma moda que traga representatividade de corpos, de raças e de gêneros, de todas as nossas marcas e dos nossos veículos de comunicação, a gente vai ver já neste presente e no futuro próximo uma variedade muito maior de biotipos. Posso dizer por mim, que já nasci muito fora do padrão: eu não me sentia representado nos meios de comunicação, e a descoberta da minha individualidade foi muito mais difícil por isso. Como pode uma pessoa negra no Brasil, um país que é majoritariamente negro, não se ver representado nas grandes publicidades, nas grandes revistas? Pessoas com deficiência não se vêem representadas em nenhum desses meios de comunicação e sequer têm a cidade adaptada para elas. Existe um conceito muito interessante de que a nossa individualidade é construída pela observação do próximo, para que a gente possa inclusive se descolar dela e entender a nossa maneira de ser. Quando a gente nasce, a gente olha para o mundo à nossa volta, os exemplos que estão ao nosso redor. Então imagina você crescer sem ver a sua cor de pele ser representada. Você crescer sem ver a sua orientação sexual ou seu gênero serem representados. Você crescer sem o seu corpo, que não se parece com o de uma modelo da Victoria's Secrets, ser representado em nenhuma campanha de lingerie. Isso cria uma disforia terrível e ratifica o bullying de outras pessoas, ratifica que opressores naturalizem essa opressão. A gordofobia está longe ainda de ser reconhecida como um mal terrível. Muitas pessoas reconhecem, mas ela ainda deveria ser levada a sério e combatida de uma forma muito mais ferrenha do que a gente combate agora. A gente entende que, se usarmos esse mesmo vetor para incentivar os estilos e as expressões individuais radicais, a gente vai ter um mundo muito mais livre. E entre essa liberdade eu já começo colocando a questão binária. Dividir tudo em homem e mulher, rosa e azul, já não dava certo pra mim. Eu pensava: "Que mundo é esse que associa a sua genitália a uma série de padrões de comportamento?" E a moda tem muito a ver com isso e te diz quem que você tem que ser. Portanto, eu digo: a moda do presente e do futuro não está aqui pra te dizer como você tem que se parecer. Ela não está aqui pra dizer que roupa você tem que usar. Ela está aqui pra te oferecer inúmeros caminhos para que você aprimore o seu estilo pessoal e para que você seja a melhor versão de você mesmo. Como foi a sua descoberta da sua sexualidade? O mundo aponta para você a sua orientação sexual antes de você conhecê-la de verdade. Como naturalmente eu já tinha uma maneira delicada, e que trazia códigos lidos como femininos, as pessoas me chamavam de gay e bicha antes de eu sequer entender que tinha desejo por homens. Acho que muitas pessoas passam por isso, inclusive por vezes héteros que têm uma personalidade mais sensível e que são apontados e questionados se não reproduzem os padrões do macho alfa, competitivo ou garanhão. Mas eu acho que meu primeiro crush foi o Paulo Ricardo, quando eu tinha cinco anos, mais ou menos. Eu olhava o Paulo Ricardo cantando e eu ficava apaixonado. Já contei isso pra ele, ele rachou de rir também. Agradeci ele, inclusive, por ser esse crush. Acho que hoje, apesar de estarmos ainda no país que mais mata a LGBTs no mundo, mas graças a uma representatividade maior, que ainda tem que crescer, isso já está sendo mais naturalizado. Eu não tinha a Pabllo Vittar para ser fã quando eu era criança, eu não tinha outros modelos. Hoje toda novela tem um casal gay. Mais uma vez com ressalvas, porque eles também criam versões muito caricatas e estereotipadas, mas tem uma representatividade maior, que teria me ajudado. Acho que no final da infância e começo da adolescência eu já saquei que realmente gostava de homens, mas eu tinha uma culpa por isso. Porque o mundo à minha volta passava essa mensagem, e eu olhava e sabia os estigmas que outras pessoas estavam sofrendo. E sabendo que a minha passabilidade branca, ou a mesmo educação que eu tive e me colocaram num lugar de menos opressão do que milhões de outras histórias de LGBTs que a gente acompanha. Agradeço demais à minha família. Meu pai sofreu, e tem aspectos com os quais ele sofre até hoje, questões que ainda não são 100% naturalizadas para ele, mas eles foram maravilhosos, me deram a chance de eu poder ser quem eu era. Se eles não me dessem eu seria também, assim como tenho milhões de amigos que os pais não deixaram, e eles foram. No ano passado, em uma entrevista para a Trip, o Ney Matogrosso disse que nunca quis casar. Ele disse: "Eu continuo livre. Aparecem pessoas na minha vida que querem casar, e eu digo: porra gente, casar? Que pensamento atrasado esse de casar. Isso já vai eliminando as pessoas que aparecem na minha vida, porque as que querem casar já saem fora, eu não caso não". Por que diabos você resolveu casar? Ainda bem que eu não quis casar com ele, se não eu já tinha levado um fora. Eu quis casar porque eu estou super apaixonado, esse foi o principal motivo, obviamente. E porque, nesse processo da pandemia, onde só pensar no aumento de violência doméstica aconteceu, nos coloca numa situação de refletir sobre a barra que muita gente está passando de ter que ficar em casa junto. Aqui outros laços se fortaleceram, porque a gente depende tanto um do outro– nesse momento mais que nunca. No meu caso e do Gama, esses dois meses, que foram também de muita luta e de muita adaptação, fortaleceram demais o nosso amor, a nossa parceria, o nosso companheirismo, estar um pelo outro. E foi bem fulminante a nossa história: a gente se conheceu, se apaixonou e começamos a morar juntos no segundo mês de namoro. A gente já falava que queria casar quando fizesse um ano de namoro, ficava se chamando de noivo. Ao mesmo tempo com ironia, porque eu mesmo nunca tinha estado numa igreja, e não entrei agora também. Nunca tive esse fetiche com o casamento ou com essa instituição do casamento, mas justamente pelo relacionamento estar numa sintonia tão gostosa, a gente falava: "Quando fizer um ano a gente casa e pode se chamar de marido e marido". E aí a data caiu justamente no meio da pandemia. Ao invés de cancelar, pensamos como poderíamos fazer isso da maneira mais afetuosa possível. E foi assim. A gente não casou propriamente no cartório, e eu nem acho que seja essa a grande questão. Claro que o nosso casamento teve dança do fogo, show da Bianca Exótica e performances maravilhosas. A festa teve bundalelê, teve de tudo, cada um na sua casa com seus drinks. Foi essa celebração à vida. Eu já tinha sido casado, morado junto, mas eu nunca tinha efetivamente oficializado o matrimônio dessa forma. E, desculpa Ney, mas é muito bom, viu? Eu te recomendo repensar. Reforçar laços de afeto e de amor que sejam legítimos está entre as grandes curas que o mundo precisa neste momento. Você acha que a hora que acabar a quarentena, que sair a vacina, a estupidez volta a se instalar ou a gente sai dessa história com algum grau de evolução da humanidade? Eu te devolvo com uma pergunta: o quanto você está disposto a lutar para que o mundo não volte a ser o mesmo? Eu acho que a questão é essa, né? Se a gente quer que o mundo volte a ser o mesmo, a gente vai forçar as engrenagens que nos trouxeram até aqui. Vamos sair lotando o shopping, comprando, comprando e comprando, tentando cada vez mais acumular bens para nós mesmos. E vamos garantir assim a manutenção do poder nas mãos dos mesmos grupos, da mesma raça, dos mesmos corpos e das mesmas verdades. Voltar ao normal? Tava normal? Era normal? Jura mesmo que era normal como estávamos antes? Então se o mundo estava favorecendo você a não mudar, agora ele está tendo uma chance maravilhosa de se perguntar. Quando eu vejo pessoas que falam "não vejo a hora de voltar ao normal", fico boquiaberto. Que normal é esse que você quer voltar a ser? O meu exercício, todos os dias, é garantir que a gente não volte ao normal, ao antigo normal, e que a gente repense o que é esse novo normal – expressão que foi muito polêmica aqui. Não dá para fazermos a cartomante tentando prever esse futuro. Temos que tomar atitudes no presente para costurar um futuro que realmente promova essa mudança, senão a gente vai morrer num compartilhamento de telas pretas, num compartilhamento de ideias de solidariedade que vão se esvair. A gente vai parar de compartilhar conhecimento gratuito de uma forma mais empática. Vai parar de se preocupar com o nosso vizinho para saber se ele precisa da nossa ajuda para o supermercado. A gente quer parar com isso? Tudo bem, eu quero poder estar com você, e a gente bater esse papo presencialmente. Tomara que a gente possa fazer isso logo, mas eu realmente penso que a gente está numa luta, entre tantas, para garantir que as coisas não voltem a ser as mesmas. Seu trabalho sempre teve uma coisa de cores muito forte. E uma coisa que eu pessoalmente amo é a túnica. Um dos meus maiores ídolos na música, no showbiz e na cultura brasileira é o Tim Maia, e ele adorava uma túnica. Quando você apareceu com a Neos e essas túnicas coloridas, pensei que você e Tim Maia deveriam ter se conhecido, iam se identificar demais. Ao usar a túnica, que eu chamo de caftã, que é essa túnica comprida, várias pessoas me associam a diferentes personalidades, mas ninguém nunca tinham me falado do Tim Maia, então adorei. Eu sou fã do Tim Maia, vou tentar até mentalizar na sexta-feira: eu e Tim Maia e uma arara de caftã. O caftã tem muitas origens, porque basicamente são dois quadrados de tecido costurados. Depois de criar o tecido, no tear, o ser humano fechou ele na forma de caftã. Vem do Egito Antigo até hoje, na África, nas culturas muçulmanas no Oriente Médio. Mas não acho que isso é a melhor resposta para isso. Você tem que pôr um. Sugiro que saia só de caftã, sem nem cueca, para você ver o que é a liberdade. Eu passo o verão sem calças, só sentindo o ventinho. É realmente uma peça super confortável e eu já usei caftã no café da manhã e já fui no baile de gala, tapetes vermelhos. Poucas peças permitem essa versatilidade. Uso desde 2003. Meu uso de caftã já é quase maior de idade, e continua firme e forte.
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O estilista e apresentador fala sobre mudanças urgentes no mundo da moda, questiona padrões e relembra a descoberta da sua sexualidade Dudu Bertholini é uma das figuras mais icônicas da moda brasileira e, mais recentemente, da televisão. Ele nasceu em São Paulo, mas passou a adolescência em Limeira, no interior do estado. Voltou para a capital para cursar a faculdade de moda, mercado que o consagrou. Já atuou como stylist, figurinista, estilista e diretor criativo. Em 2003, fundou com uma amiga a própria marca, a Neon, que em quase uma década de existência o projetou como um dos criadores mais inovadores da moda nacional. Além da carreira no mundo da moda, Dudu tornou-se também um comunicador. Ele integrou a bancada do Amor & Sexo, programa da TV Globo que exibiu sua última temporada no ano passado, onde pôde se posicionar com liberdade sobre temas ainda pontiagudos como sexualidade e gênero. E acaba de estrear a segunda temporada de Nós, os fashionistas, um série no canal FashionTV na qual ele entrevista colegas de profissão sobre criatividade e documenta a moda brasileira. Em conversa com o Trip FM, Dudu fala sobre a descoberta da sexualidade, seu casamento que reuniu mais de 300 convidados em uma videochamada e os desafios que a moda vai enfrentar com a pandemia. Ouça o programa no Spotify, no play abaixo ou leia a entrevista completa. [AUDIO=https://p.audio.uol.com.br/trip/2020/6/DuduBertolini.mp3; IMAGE=https://revistatrip.uol.com.br/upload/2020/06/5ed956056be25/1009x530x960x540x13x-4/dudu-bertholini-quarentena-covid-tripfm-social.jpg] Trip. Como está a vida de casado? Dudu Bertholini. Estou muito feliz com a minha vida de casado, em lua de mel. Para nós foi uma data simbólica porque, além de fazer o casamento, a gente entendeu isso como um momento super importante de troca de afeto e de conexão entre pessoas que a gente ama muito. Em nenhum momento esquecemos toda a dor e o desafio que o mundo está passando à nossa volta, mas a gente quis justamente que fosse o momento de troca de carinho, de reafirmar o amor. E diante de pessoas que são super importantes para a gente – que no nosso caso são 300 – mas, acredite, os convites ficaram prontos dois dias antes, então não conseguimos convidar metade dos amigos que a gente queria, que eram importantes, acredita? Você é muito animado e muito alegre. Qual é o segredo? Eu procuro bastante essa animação na minha vida. Mas vou confessar que essa é uma semana em que estou me sentindo super fragilizado, mais sensível, mais vulnerável, por causa de toda essa loucura que está rolando no mundo à nossa volta. Acho até que no momento desse isolamento, conseguir manter a nossa energia elevada e segurar a própria onda já é uma grande contribuição. E tudo bem para quem não está conseguindo, tá? Tem muita gente que não está conseguindo depois de três meses de confinamento. Mas eu acho que é um exercício diário, de ver o lado bom das coisas, de ter um otimismo sem alienação. Me lembro de acompanhar a sua carreira e você estava sempre, de certa forma, nos bastidores. Claro que você aparecia nos seus desfiles e nas revistas de moda, já era uma figura pública. Mas é outra coisa você estar na maior vitrine do Brasil, botar a cara num programa como o Amor & Sexo, e expor sua visão de mundo. Toda vez que eu assistia ao programa prestava atenção na delicadeza da sua postura, que, no melhor sentido da palavra, é uma coisa educada, refinada, sem fugir da contundência. E esses temas ligados à sexualidade, questões de gênero, ainda são tabus no Brasil, onde as pessoas são agredidas e assassinadas por causa disso. Você precisou pensar nisso, teve ajuda da equipe de profissionais, ou simplesmente foi lá e deixou rolar? Foi uma série de reflexões. Quando a gente passa a atuar numa plataforma que tem tanto alcance e visibilidade, a nossa responsabilidade aumenta muito. "Grandes poderes vêm com grandes responsabilidades" e ser um comunicador, ser um criador de imagem, ser o interlocutor de qualquer mensagem hoje, traz mais responsabilidade do que nunca. O tempo presente é perfeito para entendermos o impacto das nossas palavras, das nossas mensagens. E estar num veículo poderoso como a Rede Gobo aumenta essa responsabilidade. No entanto, o convite do Antonio Amancio e da Fernanda Lima, parceiros e amigos que me deram essa oportunidade, já foi porque eles entendiam que a minha visão de mundo estava alinhada com o que eles acreditavam também. LEIA TAMBÉM: Fernanda Lima questiona os próprios privilégios, empresta sua voz a diferentes causas e lida com as consequências dessas escolhas O processo todo de construção do programa é bem interdisciplinar. As nossas reuniões de pauta eram com todas as pessoas da equipe e, entre os jurados, a gente tinha uma troca enorme. O que eu aprendi, o que eu aprofundei por causa do discurso, da reflexão. Imagine sentar numa bancada com Milly Lacombe, que é uma das pensadoras mais potentes que a gente tem na contemporaneidade, com Djamila Ribeiro. Os meus amigos Edu Sterblitch, José Loreto, Mari Santos, são geniais. Cada um à sua maneira, cada um no seu recorte. A Regina Navarro Lins aprofundou a minha visão sobre o relacionamento e sobre o mundo. Tudo isso elevou o nível da discussão e da conversa, e foi de grande aprendizado. Mas já estava alinhado com minha maneira de ver o mundo. Eu agradeço demais quando você coloca essa delicadeza, a palavra é muito bonita. Ela não é fragilidade, e não tem nada errado com fragilidade, mas parece que ela é diferente. A gente tem que pensar como tornar acessíveis informações relevantes, porque se o discurso é complicado, isso reforça ainda mais a ideia de que esse problema não é com as pessoas. "A LGBTQfobia não é um problema meu porque eu não sou LGBTQ". Não, pelo contrário! A transfobia e homofobia surgiram de você, que não é LGBTQ. Assim como o racismo é um problema criado pela branquitude e não pelos negros. Então a gente conseguir fazer com que esse discurso se torne mais próximo, mais presente e mais acessível. E ser acessível não significa ser mais raso, é o nosso grande desafio numa plataforma como a Globo. [QUOTE=1086] A moda é um setor que está sofrendo demais nesse momento. Eu quero ouvir de você, que cresceu profissionalmente dentro da moda e hoje é também professor, sobre o que está acontecendo com esse campo. A maioria dos setores está sofrendo muito e drasticamente com a pandemia da Covid-19, e a moda sem dúvida é um dos que estão sendo mais questionados e abalados diante dessa transformação. Porém, a gente está diante da maior oportunidade de mudança verdadeira que a moda já teve na história recente. A moda já não estava bem. A ideia de que estava tudo bem com a moda tem que ser combatida. Estávamos num processo de aceleração cada vez maior, produzindo cada vez mais roupas, que estavam sendo liquidadas e descartadas com cada vez mais rapidez. Saímos de duas para cinco coleções por ano: é verão, inverno, alto verão, resort, enfim, cada vez mais demanda, num ciclo no qual liquidamos as roupas de verão antes da primeira flor desabrochar na primavera e vendemos roupas de inverno com um calor de 35 graus na rua. E mais uma vez privilegiando estruturas hegemônicas: marcas grandes, que se dispunham através do marketing a fazer uma conversa com diferentes consumidores, mas que no fundo só visavam a venda. Se apropriando de discursos importantes do momento, correndo atrás para agradar ao público alvo, mas sem ser uma parte positiva da mudança. Tudo isso já estava acontecendo. E há também a nossa compreensão de que a moda não é sobre roupas. A moda é sobre pessoas e já não fazia mais sentido sacrificar pessoas que ganham super pouco, trabalham em condições análogas à escravidão, e poluindo rios drasticamente, para que a gente compre uma calça jeans a preço de banana, alimentando um ciclo super predatório. Com a pandemia, todo mundo entrou num momento de recessão econômica, com exceção das farmácias ou serviços digitais, mas todo mundo quer pôr a mão na consciência e entender quais eram as suas prioridades. Vamos ver ainda a quebra de grandes instituições, de marcas de moda, de modelos de negócios que não vão sobreviver à pandemia e que, diante de uma cobrança maior do consumidor por produtos que estejam alinhados aos seus valores, não vão aguentar a onda. É um novo panorama, que não é novo, já estava acontecendo, mas agora está se acelerando e especificando. Vai ter uma ascensão de marcas menores e de designers mais autorais. Um incentivo ao que é local ou brasileiro, porque a gente vai para uma recessão econômica e tem que valorizar nossa mão de obra. A gente vai ter medo de produtos que venham de fora. Vai ter uma série de urgências de valorizar o que é feito pela gente, e aí a gente vai ter uma cobrança muito maior desses consumidores por produtos mais responsáveis, mais éticos, mais transparentes, mais justos e que de forma nenhuma ratifiquem mensagens homofóbicas, transfóbicas, racistas, misóginas, classistas. Então nós estamos no meio de uma revolução. Eu estou totalmente de acordo e torço há muitos anos para que essa revolução aconteça. Mas eu tenho uma filha adolescente, e isso me dá uma condição de examinar a vida real muito de perto. Felizmente ela está formando uma consciência bem legal e tem, por exemplo, uma visão sobre o caráter nocivo do fast fashion, fala sobre isso, pensa sobre isso. Mas na hora que ela passa na frente de um lugar desse, é como se ela fosse abduzida por forças maiores do que a própria consciência, e ela fica completamente balançada. Então a minha pergunta é a seguinte: isso tudo o que você fala faz um sentido absoluto dentro da lógica do bom senso, mas você acha que essa lógica consegue vencer a força avassaladora do fast fashion, por exemplo? Se não conseguir vencer esse sistema, nem mundo a gente vai ter para que outras realidades surjam. Basta da atrocidade predatória que vem acontecendo ano após ano. Mesmo com o crescimento de uma consciência mais sustentável, ainda vivemos um momento no qual os malefícios são muito maiores do que os benefícios. A Covid-19 pegou processos que poderiam demorar anos para acontecer, e está nos colocando diretamente diante dessas questões. E o mundo vai encontrar formas de fazer isso acontecer, eu acho que isso é inevitável. Todos nós passamos pelo mesmo paradoxo que a sua filha, a gente está sujeito a isso e eu me incluo. Por mais que eu tenha uma consciência sustentável, holística, colaborativa, eu consumo outros produtos que não vêm de boas procedências. Eu conheço muitas pessoas que já estão, de uma forma que eu não chamo de radical, mas de absurdamente legítima com seus discursos, não fazendo concessões. Eu deixo muito claro: o mais importante é que a gente seja verdadeiro com aquilo que a gente é. Eu estou numa trajetória, atendo grandes marcas do mercado que também não estão dentro dessa consciência, ou que estão parcialmente. Eu não compro tudo de produtores locais, fresco, orgânico, não estou nesse lugar ainda. E me vejo nesta contradição por vezes. A dualidade que a sua filha enfrenta é a dualidade que o mundo enfrenta. A gente diz: "Eu não compactuo com os meios de produção que poluem o mundo", mas eu quero muito comprar esse jeans que custa menos de 10 reais, sendo que a gente sabe que um par de calça jeans consome uma média de 11 mil litros de água potável para ser feita, e que o azul dessa calça jeans possivelmente tingiu rios que nunca mais vão ser recuperados. Ser legítimo, aproximar os nossos discursos das nossas atitudes, é o grande desafio do mundo. Mas também de um lado otimista, eu vejo essas novas gerações, da qual a sua filha faz parte, já alinhadas com a contemporaneidade. Jovens de 10 até 20 anos, super mais conscientes, muito mais à vontade com as questões de gênero, de sexualidade. Já não se perguntam, já não cobram de si a heterossexualidade ou demonizam a homossexualidade ou bissexualidade. Vejo essa geração usando muito mais roupas vintage, roupas de brechó, roupas usadas ou mesmo upcycling, que é quando se pega uma peça que já existe e interfere nessa peça com design para agregar valor a ela. Eu vejo essa nova geração super proativa nesse sentido, o que me dá muita esperança para os passos que vem pela frente. LEIA TAMBÉM: Como o coronavírus infectou o modo como consumimos Não dá para falar de cultura sem passar pela moda, que é um vetor de cultura gigantesco. Ao mesmo tempo, quando se olha para mazelas da sociedade, tem uma contribuição muito grande da moda e da mídia na construção de padrões e de preconceitos. Nesse momento, o mundo inteiro está se repensando, sobre estética, sobre a necessidade de consumo e sobre a necessidade de se mostrar de uma determinada maneira para o outro. Que transformação vai acontecer? A moda sai fortalecida ou enfraquecida de um trauma como uma pandemia? Acabar com quaisquer padrões é um grande objetivo da moda do presente e do futuro. Todo padrão é excludente por natureza, porque ele exclui quem não pertence a ele. Todo mundo é oprimido e sofre diante dos padrões, mesmo quem está no topo dele, mas claro que os mais oprimidos sofrem muito mais. Quando a gente entende uma interseccionalidade de raça, cor, corpo, de todas essas características, quanto mais elas se somam, mais dura é essa opressão. E, mesmo para quem atende a estes padrões, a cobrança em se manter dentro deles é uma coisa super cruel. E aí justamente a gente começa entender que a moda é um vetor muito complexo e amplo, e que depende muito da nossa visão para entender qual o resultado. Se a gente começa a realmente cobrar uma moda que traga representatividade de corpos, de raças e de gêneros, de todas as nossas marcas e dos nossos veículos de comunicação, a gente vai ver já neste presente e no futuro próximo uma variedade muito maior de biotipos. Posso dizer por mim, que já nasci muito fora do padrão: eu não me sentia representado nos meios de comunicação, e a descoberta da minha individualidade foi muito mais difícil por isso. Como pode uma pessoa negra no Brasil, um país que é majoritariamente negro, não se ver representado nas grandes publicidades, nas grandes revistas? Pessoas com deficiência não se vêem representadas em nenhum desses meios de comunicação e sequer têm a cidade adaptada para elas. Existe um conceito muito interessante de que a nossa individualidade é construída pela observação do próximo, para que a gente possa inclusive se descolar dela e entender a nossa maneira de ser. Quando a gente nasce, a gente olha para o mundo à nossa volta, os exemplos que estão ao nosso redor. Então imagina você crescer sem ver a sua cor de pele ser representada. Você crescer sem ver a sua orientação sexual ou seu gênero serem representados. Você crescer sem o seu corpo, que não se parece com o de uma modelo da Victoria's Secrets, ser representado em nenhuma campanha de lingerie. Isso cria uma disforia terrível e ratifica o bullying de outras pessoas, ratifica que opressores naturalizem essa opressão. A gordofobia está longe ainda de ser reconhecida como um mal terrível. Muitas pessoas reconhecem, mas ela ainda deveria ser levada a sério e combatida de uma forma muito mais ferrenha do que a gente combate agora. A gente entende que, se usarmos esse mesmo vetor para incentivar os estilos e as expressões individuais radicais, a gente vai ter um mundo muito mais livre. E entre essa liberdade eu já começo colocando a questão binária. Dividir tudo em homem e mulher, rosa e azul, já não dava certo pra mim. Eu pensava: "Que mundo é esse que associa a sua genitália a uma série de padrões de comportamento?" E a moda tem muito a ver com isso e te diz quem que você tem que ser. Portanto, eu digo: a moda do presente e do futuro não está aqui pra te dizer como você tem que se parecer. Ela não está aqui pra dizer que roupa você tem que usar. Ela está aqui pra te oferecer inúmeros caminhos para que você aprimore o seu estilo pessoal e para que você seja a melhor versão de você mesmo. Como foi a sua descoberta da sua sexualidade? O mundo aponta para você a sua orientação sexual antes de você conhecê-la de verdade. Como naturalmente eu já tinha uma maneira delicada, e que trazia códigos lidos como femininos, as pessoas me chamavam de gay e bicha antes de eu sequer entender que tinha desejo por homens. Acho que muitas pessoas passam por isso, inclusive por vezes héteros que têm uma personalidade mais sensível e que são apontados e questionados se não reproduzem os padrões do macho alfa, competitivo ou garanhão. Mas eu acho que meu primeiro crush foi o Paulo Ricardo, quando eu tinha cinco anos, mais ou menos. Eu olhava o Paulo Ricardo cantando e eu ficava apaixonado. Já contei isso pra ele, ele rachou de rir também. Agradeci ele, inclusive, por ser esse crush. Acho que hoje, apesar de estarmos ainda no país que mais mata a LGBTs no mundo, mas graças a uma representatividade maior, que ainda tem que crescer, isso já está sendo mais naturalizado. Eu não tinha a Pabllo Vittar para ser fã quando eu era criança, eu não tinha outros modelos. Hoje toda novela tem um casal gay. Mais uma vez com ressalvas, porque eles também criam versões muito caricatas e estereotipadas, mas tem uma representatividade maior, que teria me ajudado. Acho que no final da infância e começo da adolescência eu já saquei que realmente gostava de homens, mas eu tinha uma culpa por isso. Porque o mundo à minha volta passava essa mensagem, e eu olhava e sabia os estigmas que outras pessoas estavam sofrendo. E sabendo que a minha passabilidade branca, ou a mesmo educação que eu tive e me colocaram num lugar de menos opressão do que milhões de outras histórias de LGBTs que a gente acompanha. Agradeço demais à minha família. Meu pai sofreu, e tem aspectos com os quais ele sofre até hoje, questões que ainda não são 100% naturalizadas para ele, mas eles foram maravilhosos, me deram a chance de eu poder ser quem eu era. Se eles não me dessem eu seria também, assim como tenho milhões de amigos que os pais não deixaram, e eles foram. No ano passado, em uma entrevista para a Trip, o Ney Matogrosso disse que nunca quis casar. Ele disse: "Eu continuo livre. Aparecem pessoas na minha vida que querem casar, e eu digo: porra gente, casar? Que pensamento atrasado esse de casar. Isso já vai eliminando as pessoas que aparecem na minha vida, porque as que querem casar já saem fora, eu não caso não". Por que diabos você resolveu casar? Ainda bem que eu não quis casar com ele, se não eu já tinha levado um fora. Eu quis casar porque eu estou super apaixonado, esse foi o principal motivo, obviamente. E porque, nesse processo da pandemia, onde só pensar no aumento de violência doméstica aconteceu, nos coloca numa situação de refletir sobre a barra que muita gente está passando de ter que ficar em casa junto. Aqui outros laços se fortaleceram, porque a gente depende tanto um do outro– nesse momento mais que nunca. No meu caso e do Gama, esses dois meses, que foram também de muita luta e de muita adaptação, fortaleceram demais o nosso amor, a nossa parceria, o nosso companheirismo, estar um pelo outro. E foi bem fulminante a nossa história: a gente se conheceu, se apaixonou e começamos a morar juntos no segundo mês de namoro. A gente já falava que queria casar quando fizesse um ano de namoro, ficava se chamando de noivo. Ao mesmo tempo com ironia, porque eu mesmo nunca tinha estado numa igreja, e não entrei agora também. Nunca tive esse fetiche com o casamento ou com essa instituição do casamento, mas justamente pelo relacionamento estar numa sintonia tão gostosa, a gente falava: "Quando fizer um ano a gente casa e pode se chamar de marido e marido". E aí a data caiu justamente no meio da pandemia. Ao invés de cancelar, pensamos como poderíamos fazer isso da maneira mais afetuosa possível. E foi assim. A gente não casou propriamente no cartório, e eu nem acho que seja essa a grande questão. Claro que o nosso casamento teve dança do fogo, show da Bianca Exótica e performances maravilhosas. A festa teve bundalelê, teve de tudo, cada um na sua casa com seus drinks. Foi essa celebração à vida. Eu já tinha sido casado, morado junto, mas eu nunca tinha efetivamente oficializado o matrimônio dessa forma. E, desculpa Ney, mas é muito bom, viu? Eu te recomendo repensar. Reforçar laços de afeto e de amor que sejam legítimos está entre as grandes curas que o mundo precisa neste momento. Você acha que a hora que acabar a quarentena, que sair a vacina, a estupidez volta a se instalar ou a gente sai dessa história com algum grau de evolução da humanidade? Eu te devolvo com uma pergunta: o quanto você está disposto a lutar para que o mundo não volte a ser o mesmo? Eu acho que a questão é essa, né? Se a gente quer que o mundo volte a ser o mesmo, a gente vai forçar as engrenagens que nos trouxeram até aqui. Vamos sair lotando o shopping, comprando, comprando e comprando, tentando cada vez mais acumular bens para nós mesmos. E vamos garantir assim a manutenção do poder nas mãos dos mesmos grupos, da mesma raça, dos mesmos corpos e das mesmas verdades. Voltar ao normal? Tava normal? Era normal? Jura mesmo que era normal como estávamos antes? Então se o mundo estava favorecendo você a não mudar, agora ele está tendo uma chance maravilhosa de se perguntar. Quando eu vejo pessoas que falam "não vejo a hora de voltar ao normal", fico boquiaberto. Que normal é esse que você quer voltar a ser? O meu exercício, todos os dias, é garantir que a gente não volte ao normal, ao antigo normal, e que a gente repense o que é esse novo normal – expressão que foi muito polêmica aqui. Não dá para fazermos a cartomante tentando prever esse futuro. Temos que tomar atitudes no presente para costurar um futuro que realmente promova essa mudança, senão a gente vai morrer num compartilhamento de telas pretas, num compartilhamento de ideias de solidariedade que vão se esvair. A gente vai parar de compartilhar conhecimento gratuito de uma forma mais empática. Vai parar de se preocupar com o nosso vizinho para saber se ele precisa da nossa ajuda para o supermercado. A gente quer parar com isso? Tudo bem, eu quero poder estar com você, e a gente bater esse papo presencialmente. Tomara que a gente possa fazer isso logo, mas eu realmente penso que a gente está numa luta, entre tantas, para garantir que as coisas não voltem a ser as mesmas. Seu trabalho sempre teve uma coisa de cores muito forte. E uma coisa que eu pessoalmente amo é a túnica. Um dos meus maiores ídolos na música, no showbiz e na cultura brasileira é o Tim Maia, e ele adorava uma túnica. Quando você apareceu com a Neos e essas túnicas coloridas, pensei que você e Tim Maia deveriam ter se conhecido, iam se identificar demais. Ao usar a túnica, que eu chamo de caftã, que é essa túnica comprida, várias pessoas me associam a diferentes personalidades, mas ninguém nunca tinham me falado do Tim Maia, então adorei. Eu sou fã do Tim Maia, vou tentar até mentalizar na sexta-feira: eu e Tim Maia e uma arara de caftã. O caftã tem muitas origens, porque basicamente são dois quadrados de tecido costurados. Depois de criar o tecido, no tear, o ser humano fechou ele na forma de caftã. Vem do Egito Antigo até hoje, na África, nas culturas muçulmanas no Oriente Médio. Mas não acho que isso é a melhor resposta para isso. Você tem que pôr um. Sugiro que saia só de caftã, sem nem cueca, para você ver o que é a liberdade. Eu passo o verão sem calças, só sentindo o ventinho. É realmente uma peça super confortável e eu já usei caftã no café da manhã e já fui no baile de gala, tapetes vermelhos. Poucas peças permitem essa versatilidade. Uso desde 2003. Meu uso de caftã já é quase maior de idade, e continua firme e forte.
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