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Kiluanji Kia Henda: "A liberdade é uma base indispensável"
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Kiluanji Kia Henda deu na sexta-feira, 25 de Outubro, uma masterclass sobre memória e espaço público na Universidade Sorbonne, em Paris. O artista angolano tem vindo a desenvolver um trabalho em torno de memórias e narrativas históricas, usando a ficção como meio para questionar e reinterpretar o passado. Kiluanji Kia Henda alerta para o facto de "faltar acesso ao conhecimento histórico [em Angola]".
RFI: Cria obras de arte, performance, filmes. Aqui usou da palavra para partilhar a sua história e partilhar o que o inspirou a fazer os seus projectos. Disse que falta contar tudo. Podemos dizer que o seu trabalho liberta memórias?
Kiluanji Kia Henda: Acho que mais do que pensar sobre libertar memórias, é preciso activa-las, mas activa-las não no sentido de tentar ser fiel à memória ou ao passado, mas tentar encontrar uma interpretação que seja fiel a narrativas já existentes. Existe mais uma tentativa de olhar para a ficção, de como podemos fantasiar e de como podemos questionar certos episódios de passado, certos episódios que são centrais na nossa história, usando o campo da ficção para que isso possa acontecer. Para mim sempre foi importante esse questionamento da história através da ficção.
Fala da ficção, mas baseia-se na realidade e do que observa à sua volta?
Sim, é necessário para mim essa observação. Sou uma pessoa extremamente observadora, mas no momento em que trago para aquilo que é a minha criação, já obedece outra forma de estar. Existe uma maior liberdade. Eu gosto da liberdade que os campos da ficção me permitem, embora possa criar essa relação com a realidade, tentar criar ali uma linha ténue entre ficção e realidade do que é o documentário e do que é a liberdade poética. Mas para mim, é importante pensar sobre os campos da liberdade que a ficção que a poesia permitem, no sentido de que não me cria um compromisso com que a realidade. Isso permite me também poder viajar sobre distintas temporalidades que eu acho muito importante do contexto de onde venho, do país de onde venho, do continente de onde sou. Essa capacidade de poder viajar em distintas temporalidades é para mim uma das vantagens de ser um artista. Para mim é esse poder que a arte me atribui, poder viajar em diferentes temporalidades.
Na masterclass disse que "não existe Angola sem projecto colonial, que os ciclos de violência trouxeram o vazio no país, trouxeram a falta de acesso à história, uma incapacidade de projectar um futuro". Fez referência, nomeadamente, à pobreza, condição que impede que as pessoas se consigam projectar para o dia de amanhã, uma vez que os problemas existem no tempo presente e no dia-a-dia. É isso que o leva a pensar na história?
Sim, é exactamente isso. Quando falei sobre essa viagem entre distintas temporalidades, como criar uma ponte entre passado e futuro, mas rejeitando o presente. Poder fazer esse exercício dentro da criação artística é necessário num lugar onde toda a questão da violência histórica e de toda a dificuldade que ainda se vive e se agarra nos muito ao presente. Eu penso que olhamos para todas as grandes sociedades. São aquelas que têm acesso à história e têm a capacidade de projectar o seu futuro.
Os angolanos não têm acesso à história?
É muito débil esse acesso porque primeiro vem de uma situação de sistemática destruição das suas referências históricas, que foi causada pela colonização e, segundo, ainda hoje, não existe um verdadeiro investimento nessas estruturas que lhe permitam preservar e também que permitam ter o acesso a esse conhecimento histórico. Claro que quando falo que não existe Angola sem colonização também é referindo a importância de pensarmos sobre toda essa diversidade cultural étnica que muitas vezes desaparece quando tudo se torna um discurso hegemónico, que tem como a sua base a colonização.
Além de que, como referiu, "o pior da censura é o polícia que vive dentro de nós". Há uma herança também desse polícia?
Existe uma herança, claro, à escala global. Existe polícia de formas distintas em diversas sociedades. A auto-censura é algo que está inerente à humanidade. Claro que há contextos históricos e sociais onde se tornam ainda muito mais presentes, onde se tornam ainda mais perverso e mesmo violento. É claro que isso sempre foi um inimigo da liberdade criativa, um inimigo da daquilo que pode permitir um artista viver no seu maior esplendor e com liberdade de pensamento, que o possa levar para caminhos de criação possivelmente inexplorados. Acho que estamos numa humanidade que constantemente vive e que se silencia muitas vezes perante a questão do medo. Como dizia a cantora Nina Simone, a liberdade é viver sem medo. E daí parte essa a questão de podermos confrontar os nossos medos. No momento em que nós aprendemos a confrontá-los, também é um peso que tiramos de cima de nós. Para mim o único caminho que pode existir para para um discurso que seja honesto. A liberdade é uma base indispensável.
Tenho medos?
Tenho, tenho medo, sim. Tenho medos relacionados sobre dados pessoais, sobre a minha questão de como eu próprio levo a minha vida, de como eu faço a gestão do meu tempo e aperceber-me das minhas fragilidades. Isso também também atiça e alimenta os meus medos. Sou uma pessoa com uma extrema empatia. De quem vive à minha volta somente as pessoas próximas de amigos e família, mas desse mundo que compartimos e sentir esse risco constante de que as pessoas estão submetidas. Para mim, olhar para toda a questão da geopolítica, que está a olhar para o mundo no estado em que está, claro que, muitas vezes, independentemente das distâncias geográficas, acabamos por ser afectados pela ideia do medo, dessa ideia de amanhã não termos controlo e de não saber onde podemos estar amanhã.
A minha paz está na busca incessante dentro do meu trabalho. Dessa liberdade de esticar, de puxar a corda, de poder ter cada vez mais uma ousadia, de arriscar, de estar consciente sobre a minha ignorância e não olhar para ela simplesmente como um defeito, mas como todo um espaço vasto ainda por explorar. Costumo dizer que o meu maior estúdio, a minha própria ignorância. Então, essa conquista, desse espaço que às vezes pouco dominamos, essa luta diária também é um processo de poder lidar com os medos, onde está sempre aí. Mas mais do que aprender a viver com eles, com certeza vamos sempre aprender a combatê-los.
127 episódios
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Kiluanji Kia Henda deu na sexta-feira, 25 de Outubro, uma masterclass sobre memória e espaço público na Universidade Sorbonne, em Paris. O artista angolano tem vindo a desenvolver um trabalho em torno de memórias e narrativas históricas, usando a ficção como meio para questionar e reinterpretar o passado. Kiluanji Kia Henda alerta para o facto de "faltar acesso ao conhecimento histórico [em Angola]".
RFI: Cria obras de arte, performance, filmes. Aqui usou da palavra para partilhar a sua história e partilhar o que o inspirou a fazer os seus projectos. Disse que falta contar tudo. Podemos dizer que o seu trabalho liberta memórias?
Kiluanji Kia Henda: Acho que mais do que pensar sobre libertar memórias, é preciso activa-las, mas activa-las não no sentido de tentar ser fiel à memória ou ao passado, mas tentar encontrar uma interpretação que seja fiel a narrativas já existentes. Existe mais uma tentativa de olhar para a ficção, de como podemos fantasiar e de como podemos questionar certos episódios de passado, certos episódios que são centrais na nossa história, usando o campo da ficção para que isso possa acontecer. Para mim sempre foi importante esse questionamento da história através da ficção.
Fala da ficção, mas baseia-se na realidade e do que observa à sua volta?
Sim, é necessário para mim essa observação. Sou uma pessoa extremamente observadora, mas no momento em que trago para aquilo que é a minha criação, já obedece outra forma de estar. Existe uma maior liberdade. Eu gosto da liberdade que os campos da ficção me permitem, embora possa criar essa relação com a realidade, tentar criar ali uma linha ténue entre ficção e realidade do que é o documentário e do que é a liberdade poética. Mas para mim, é importante pensar sobre os campos da liberdade que a ficção que a poesia permitem, no sentido de que não me cria um compromisso com que a realidade. Isso permite me também poder viajar sobre distintas temporalidades que eu acho muito importante do contexto de onde venho, do país de onde venho, do continente de onde sou. Essa capacidade de poder viajar em distintas temporalidades é para mim uma das vantagens de ser um artista. Para mim é esse poder que a arte me atribui, poder viajar em diferentes temporalidades.
Na masterclass disse que "não existe Angola sem projecto colonial, que os ciclos de violência trouxeram o vazio no país, trouxeram a falta de acesso à história, uma incapacidade de projectar um futuro". Fez referência, nomeadamente, à pobreza, condição que impede que as pessoas se consigam projectar para o dia de amanhã, uma vez que os problemas existem no tempo presente e no dia-a-dia. É isso que o leva a pensar na história?
Sim, é exactamente isso. Quando falei sobre essa viagem entre distintas temporalidades, como criar uma ponte entre passado e futuro, mas rejeitando o presente. Poder fazer esse exercício dentro da criação artística é necessário num lugar onde toda a questão da violência histórica e de toda a dificuldade que ainda se vive e se agarra nos muito ao presente. Eu penso que olhamos para todas as grandes sociedades. São aquelas que têm acesso à história e têm a capacidade de projectar o seu futuro.
Os angolanos não têm acesso à história?
É muito débil esse acesso porque primeiro vem de uma situação de sistemática destruição das suas referências históricas, que foi causada pela colonização e, segundo, ainda hoje, não existe um verdadeiro investimento nessas estruturas que lhe permitam preservar e também que permitam ter o acesso a esse conhecimento histórico. Claro que quando falo que não existe Angola sem colonização também é referindo a importância de pensarmos sobre toda essa diversidade cultural étnica que muitas vezes desaparece quando tudo se torna um discurso hegemónico, que tem como a sua base a colonização.
Além de que, como referiu, "o pior da censura é o polícia que vive dentro de nós". Há uma herança também desse polícia?
Existe uma herança, claro, à escala global. Existe polícia de formas distintas em diversas sociedades. A auto-censura é algo que está inerente à humanidade. Claro que há contextos históricos e sociais onde se tornam ainda muito mais presentes, onde se tornam ainda mais perverso e mesmo violento. É claro que isso sempre foi um inimigo da liberdade criativa, um inimigo da daquilo que pode permitir um artista viver no seu maior esplendor e com liberdade de pensamento, que o possa levar para caminhos de criação possivelmente inexplorados. Acho que estamos numa humanidade que constantemente vive e que se silencia muitas vezes perante a questão do medo. Como dizia a cantora Nina Simone, a liberdade é viver sem medo. E daí parte essa a questão de podermos confrontar os nossos medos. No momento em que nós aprendemos a confrontá-los, também é um peso que tiramos de cima de nós. Para mim o único caminho que pode existir para para um discurso que seja honesto. A liberdade é uma base indispensável.
Tenho medos?
Tenho, tenho medo, sim. Tenho medos relacionados sobre dados pessoais, sobre a minha questão de como eu próprio levo a minha vida, de como eu faço a gestão do meu tempo e aperceber-me das minhas fragilidades. Isso também também atiça e alimenta os meus medos. Sou uma pessoa com uma extrema empatia. De quem vive à minha volta somente as pessoas próximas de amigos e família, mas desse mundo que compartimos e sentir esse risco constante de que as pessoas estão submetidas. Para mim, olhar para toda a questão da geopolítica, que está a olhar para o mundo no estado em que está, claro que, muitas vezes, independentemente das distâncias geográficas, acabamos por ser afectados pela ideia do medo, dessa ideia de amanhã não termos controlo e de não saber onde podemos estar amanhã.
A minha paz está na busca incessante dentro do meu trabalho. Dessa liberdade de esticar, de puxar a corda, de poder ter cada vez mais uma ousadia, de arriscar, de estar consciente sobre a minha ignorância e não olhar para ela simplesmente como um defeito, mas como todo um espaço vasto ainda por explorar. Costumo dizer que o meu maior estúdio, a minha própria ignorância. Então, essa conquista, desse espaço que às vezes pouco dominamos, essa luta diária também é um processo de poder lidar com os medos, onde está sempre aí. Mas mais do que aprender a viver com eles, com certeza vamos sempre aprender a combatê-los.
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