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Quem se destrói não se cansa. Uma conversa com Nuno dos Santos Sousa

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Na década de 1960, José Gomes Ferreira falava de "cerca de trezentas pessoas heróicas que andam de um lado para o outro, em Lisboa, a fingir cultura". Não estamos seguros sobre os números actuais, uma vez que se tornou bastante difícil realizar censos num tempo de tal modo desvitalizado, sem recreios, ringues ou arenas, e é, de resto, esse um dos aspectos que provocam mais frio, a sensação de não sabermos quantos somos, nem com o que contamos. E se não falta garganta aos actuais mestres de cerimónia, depois se nos deixamos levar e entramos por aquelas espeluncas a dentro é tudo demasiado confrangedor, acabamos por ver a noite desfeita e esparvoada diante de uns espectáculos de striptease em que os clientes às tantas pagam é para aquelas aberrações de feira vestirem qualquer coisa. Todos acusam a ausência disto e daquilo, e se se fala muito em jovens promessas, tarda em ouvir-se esse ronco instigante da magnífica fome nova. Mas como lembrava o Macaco, mesmo essa obsessão com o "novo" ("novos espaços", "novas formas", "novas linguagens") é acima de tudo um sintoma do desespero reinante, onde todos rezam pelo surgimento de um novo produto que se inscreva num registo alternativo ao do desastre em curso. Naturalmente, isto só abre margem para um tráfico de distracções. Quanto aos elementos de regeneração e aos gestos próprios da juventude, tudo isso parece ter-se eclipsado, depois dessa forma de condicionamento para trocar a vida por ambições e resumi-la com base em formas de subjugação consentida, andando todos embarcados nos delírios cretinizantes do empreendedorismo. Se antes os jovens detestavam o trabalho, e se entregavam a algum enredo perdulário, estimando os seus hábitos de renúncia e de tédio, que deixava a vista desimpedida de forma a reunirem essa "astronomia de imagens essenciais", de que falava Herberto Helder, hoje gostam muito de falar e de exprimir sentimentos estrondosos de forma a se isentarem de qualquer tipo de acção ou compromisso mais severo. Se antes olhavam para as mãos, com um desprendimento íntimo, vagaroso, quase sardónico, agora fazem contas, desenham soluções de investimento, estimam os juros que irão auferir seguindo este ou aquele plano de valorização pessoal. Num país cada vez mais condenado a si mesmo, as redes de competição dominam todos os aspectos da nossa existência, e aqueles que patrulham as zonas comuns do campus cultural "só se apertam para cumplicidades relezinhas", como vincava Maria Velho da Costa. "País onde tudo o que é comunal e fecundo é maldito. Terra que não aguenta expressas a raiva e a maldade que estão também em toda a criação conjunta. Canteirinho de sentimentos bons onde ninguém sabe gerir a violência senão pela paixão ou a ruptura. Onde cada um não aguenta a mesquinhez dos outros por demasiado terror da própria. Onde todo aquele que intervém a criar é melhor que todo aquele que intervém a criar e por isso só os que estão para conservar e destruir, esses, estão juntos." Vai ser preciso não um projecto de salvação, mas uma doença fabulosa, que reponha o sentido das coisas, algo como um "cancro novo em corpo de lepra lenta". Por agora, predomina a morbidez da vaidade, "a mesma ordem de matar de manso em tudo e todos", de abafar, de gerir um imenso pacto no sentido de silenciar quem quer que não se limite a este triste esquema de engodar a própria morte, fazer dela um patético número de cabaré. E se a universidade, como sempre, encolhe os ombros, à volta anda tudo desavindo, nuns perpétuos amuos que não dão margem a qualquer espécie de jogo. Este regime de castração química de todos os intervenientes que ofendam o protocolo e código cerimonioso, tem-nos a todos de castigo. Querem vir para a literatura como quem se tranca no quarto e não quer ouvir falar do mundo, e tremem sempre que algum rumor atravessa as paredes. Se Velho da Costa notava que antes se escrevia sobre o papel, do lado de fora do corpo, hoje tudo faz parte do corpo, e tomam a crítica por "body shaming". Escrevem como quem faz momices frente ao espelho, e só aceita reflexos ou ecos de ordem publicitária. Neste episódio, mandámos vir especialmente dos subúrbios nortenhos um espécime dessa raça praticamente extinta do jovem poeta que aperfeiçoou a letra, a paixão e a fúria copiando à vista os bestiais da tradição, pondo a admiração a uma boa distância do próprio ego, e aprendendo a cercar e dar caça à matéria que fala. Nuno dos Santos Sousa não vem nas listas, não entra nos greatest hits da parolagem, mas integra esse núcleo duro dos que gostam de estudar os passos morosos e ilegíveis dos nossos mais sinuosos perfis, num tempo em que ainda é com os fantasmas que se consegue manter uma conversa enquanto se deixa a noite trabalhar expondo os seus finais mais impiedosos.

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