Bônus 11: "A vida real", de Adeline Dieudonné
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Livro de Adeline Dieudonné tem sangue, suspense e sustos
Escrito por Irinêo Netto, publicado pelo Plural.
“A vida real”, da belga Adeline Dieudonné, tem uma narrativa que você lê rápido, virando as páginas uma depois da outra, completamente envolvido pela história.
Publicado pela editora Nós e com tradução de Letícia Mei, a história conta com todos os elementos de um bom thriller e também com algo mais. Há sangue, suspense e sustos. E o algo mais fica por conta do talento de Adeline Dieudonné, que consegue criar uma atmosfera meio sobrenatural mesmo com os dois pés fincados num mundo que parece muito a realidade que existe fora do livro.
A narradora é uma menina que tem dez anos no começo da história. Ela tem um irmão quatro anos mais novo, uma mãe omissa e submissa, e um pai violento. Tudo que diz respeito aos sentimentos e ao modo como as pessoas se comportam são tratados pela jovem narradora como algo estranho, com vida própria, como uma fera que toma posse dos seres humanos.
Até mesmo o que ela sente é explicado dessa forma. Numa cena terrível, no meio da floresta, acuada, ela pensa: “Foi então que ela eclodiu. No fundo do meu ventre. Não era nas vísceras, era mais profundo do que isso. Muito além de tudo. Brotou uma criatura muito maior do que eu. No meu ventre. (…) Eu não era uma presa. Nem um predador. Eu era eu, e eu era indestrutível”.
Da dificuldade de explicar a maldade do pai que, aos poucos, vai tomando conta também do irmão, ela acaba atribuindo esse ódio a uma hiena empalhada que o pai –um caçador orgulhoso dos seus troféus – mantém em casa. “Mesmo empalhada, ela estava viva – eu tinha certeza –, e se deliciava com o terror provocado em cada olhar que cruzasse o seu.”
Logo, fica claro que a história é sobre a luta da narradora – que descobre ter uma inteligência muito acima da média – contra os monstros ao seu redor. E o maior deles é o próprio pai e a vida sufocante que ele impõe à família: sem nenhum afeto, ignorante e violenta. O pai é uma figura horrorosa. Um canalha ressentido que personifica tudo que pode haver de ruim num homem.
Esse duelo entre a narradora e o pai chega a um clímax que não convém revelar aqui. Trata-se de um livro que se baseia muito nas revelações que faz ao longo do caminho. Lembra um Stephen King, tem boas cenas e daria uma boa série da Netflix.
A maior engenhosidade do livro de Adeline Dieudonné é contar a história pelos olhos de uma criança. Vem daí a sensação de que algumas coisas são sobrenaturais, difíceis de ser explicadas, ou mesmo incompreensíveis. O mundo pode ser assim para uma criança, ainda mais um mundo agressivo como o da “Vida real”.
Mas parece haver uma falha. Porque a narradora não é mais criança – ela está contando tudo o que aconteceu no passado. E às vezes a diferença entre a pessoa que a narradora é enquanto narra e aquela que ela foi na história que está narrando gera uns curtos-circuitos. Porque, em alguns momentos, ela se entrega à ingenuidade da criança que foi sem nenhuma mediação. É como se ela tivesse de novo dez anos de idade e falasse com a voz dessa criança e não com a voz da pessoa que ela se tornou ao fim dessa história. Mesmo que não faça sentido, ainda é possível. Mas aí o livro não ajuda a entender por que isso acontece.
Ou a história é de fato narrada pela criança de dez anos que cresce ao longo da ação. Mas, nesse caso, é estranho que ela seja inteligente a ponto de sacar o mundo e as pessoas com uma profundidade impressionante para alguém da sua idade e, ao mesmo tempo, ser ingênua para acreditar em viagens no tempo e bruxarias, exatamente como uma criança de dez anos.
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Escrito por Irinêo Netto, publicado pelo Plural.
“A vida real”, da belga Adeline Dieudonné, tem uma narrativa que você lê rápido, virando as páginas uma depois da outra, completamente envolvido pela história.
Publicado pela editora Nós e com tradução de Letícia Mei, a história conta com todos os elementos de um bom thriller e também com algo mais. Há sangue, suspense e sustos. E o algo mais fica por conta do talento de Adeline Dieudonné, que consegue criar uma atmosfera meio sobrenatural mesmo com os dois pés fincados num mundo que parece muito a realidade que existe fora do livro.
A narradora é uma menina que tem dez anos no começo da história. Ela tem um irmão quatro anos mais novo, uma mãe omissa e submissa, e um pai violento. Tudo que diz respeito aos sentimentos e ao modo como as pessoas se comportam são tratados pela jovem narradora como algo estranho, com vida própria, como uma fera que toma posse dos seres humanos.
Até mesmo o que ela sente é explicado dessa forma. Numa cena terrível, no meio da floresta, acuada, ela pensa: “Foi então que ela eclodiu. No fundo do meu ventre. Não era nas vísceras, era mais profundo do que isso. Muito além de tudo. Brotou uma criatura muito maior do que eu. No meu ventre. (…) Eu não era uma presa. Nem um predador. Eu era eu, e eu era indestrutível”.
Da dificuldade de explicar a maldade do pai que, aos poucos, vai tomando conta também do irmão, ela acaba atribuindo esse ódio a uma hiena empalhada que o pai –um caçador orgulhoso dos seus troféus – mantém em casa. “Mesmo empalhada, ela estava viva – eu tinha certeza –, e se deliciava com o terror provocado em cada olhar que cruzasse o seu.”
Logo, fica claro que a história é sobre a luta da narradora – que descobre ter uma inteligência muito acima da média – contra os monstros ao seu redor. E o maior deles é o próprio pai e a vida sufocante que ele impõe à família: sem nenhum afeto, ignorante e violenta. O pai é uma figura horrorosa. Um canalha ressentido que personifica tudo que pode haver de ruim num homem.
Esse duelo entre a narradora e o pai chega a um clímax que não convém revelar aqui. Trata-se de um livro que se baseia muito nas revelações que faz ao longo do caminho. Lembra um Stephen King, tem boas cenas e daria uma boa série da Netflix.
A maior engenhosidade do livro de Adeline Dieudonné é contar a história pelos olhos de uma criança. Vem daí a sensação de que algumas coisas são sobrenaturais, difíceis de ser explicadas, ou mesmo incompreensíveis. O mundo pode ser assim para uma criança, ainda mais um mundo agressivo como o da “Vida real”.
Mas parece haver uma falha. Porque a narradora não é mais criança – ela está contando tudo o que aconteceu no passado. E às vezes a diferença entre a pessoa que a narradora é enquanto narra e aquela que ela foi na história que está narrando gera uns curtos-circuitos. Porque, em alguns momentos, ela se entrega à ingenuidade da criança que foi sem nenhuma mediação. É como se ela tivesse de novo dez anos de idade e falasse com a voz dessa criança e não com a voz da pessoa que ela se tornou ao fim dessa história. Mesmo que não faça sentido, ainda é possível. Mas aí o livro não ajuda a entender por que isso acontece.
Ou a história é de fato narrada pela criança de dez anos que cresce ao longo da ação. Mas, nesse caso, é estranho que ela seja inteligente a ponto de sacar o mundo e as pessoas com uma profundidade impressionante para alguém da sua idade e, ao mesmo tempo, ser ingênua para acreditar em viagens no tempo e bruxarias, exatamente como uma criança de dez anos.
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