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#182 – Racismo ambiental: uma herança colonial

19:22
 
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Em homenagem ao Dia da Consciência Negra, o programa mergulha nas raízes históricas do racismo ambiental e em como ele afeta, de forma desproporcional, populações negras, quilombolas e indígenas no Brasil. O episódio também destaca a resistência dessas comunidades e suas contribuições para a preservação ambiental em meio à crise climática.

No episódio, Maíra Rodrigues, quilombola, bióloga e pesquisadora do Instituto de Geociências da Unicamp, e Lucas Silva, técnico em controle ambiental e jongueiro da comunidade Jongo Dito Ribeiro são entrevistados.

Larah Camargo: O ano era 1982. Em Afton, na Carolina do Norte, Estados Unidos, um grupo de mulheres deitava na estrada que dava acesso ao condado para impedir a passagem de dezenas de caminhões.

Esses caminhões não levavam qualquer carga: eram toneladas de terra contaminadas por bifenilas policloradas, os chamados PCBs.

[vinheta Oxigênio]

Raphael Alves: Os PCBs são produtos químicos sintéticos que foram amplamente utilizados por diferentes indústrias no século 20. Desde tintas, plásticos, adesivos, até em refrigerantes…

Já na década de 1970, cientistas descobriram que eles eram extremamente tóxicos e se acumulavam no ambiente. Até 1979, a sua produção já tinha sido completamente banida no país e em diversas partes do mundo.

Se essas substâncias são inaladas ou absorvidas pela pele, elas podem causar câncer, danos cerebrais, nascimentos prematuros com deformações e outros efeitos negativos na saúde humana.

No meio ambiente, os PCBs levam muitas décadas para se degradar, e o seu descarte inapropriado pode contaminar o solo, os leitos dos rios, diferentes espécies de animais e toda uma cadeia alimentar de uma região.

Larah: Eu acho que você também não ia querer ter esse tipo de descarte no seu quintal. E foi exatamente por isso que as mulheres de Afton tavam deitadas na estrada naquele 16 de setembro. Elas tavam protestando contra a criação de um lixão no qual iam despejar esse material tóxico, próximo a área onde essas famílias moravam.
Mais de 500 manifestantes foram presos nessa ocasião. Mas o protesto não conseguiu evitar o aterro de lixo, e o governo começou a empilhar a terra contaminada em uma área equivalente a quase 9 campos de futebol – escavando em terras que eram agrícolas.

E tem um “detalhe” que eu ainda não te contei: 70% da população de Afton na época era composta por pessoas negras – e que, na sua grande maioria, viviam abaixo da linha da pobreza.

Essa foi a primeira vez que a gente ouviu a expressão “racismo ambiental”. O Reverendo Benjamin Franklin, que tava presente na manifestação em Afton, usou esse termo para se referir ao fato de que a degradação ambiental atinge principalmente os grupos étnicos e sociais mais vulneráveis.

Esse episódio virou um marco na luta por Justiça Climática e depois inspirou as ideias do Robert Bullard, outro grande nome do ativismo ambiental negro e que conceitualizou o racismo ambiental nas suas obras.

Raphael: Quando a gente olha pro Brasil dos anos 70, também estavam acontecendo lutas muito importantes pelos territórios dos povos tradicionais e indígenas – que mais tarde foram reconhecidas como movimentos ambientais. Um exemplo emblemático foi a resistência dos seringueiros, liderados pelo Chico Mendes, que depois culminou na criação de reservas extrativistas na Amazônia.
Mas a gente sabe que o Brasil de hoje, assim como muitos países, ainda segue um modelo de desenvolvimento que prioriza o crescimento econômico em detrimento da preservação ambiental e dos direitos dessas populações.

Larah: Grandes empreendimentos nacionais e multinacionais forçam o deslocamento de comunidades indígenas, ribeirinhas e quilombolas e transformam os seus territórios em alvo de especulação e degradação.

Assim como as mulheres de Afton, muitas dessas populações lidam com o drama de viver perto de áreas de risco de desastres e de impacto ambiental – as chamadas “zonas de sacrifício”.

Maíra Rodrigues: O racismo ambiental perpassa por essas violações de direitos que acontecem desde um período colonial, onde a gente tem as comunidades quilombolas, os povos tradicionais num lugar de salvaguarda desses territórios, mas que muitos outros são impactados por diversos, a gente chama hoje na militância quilombola, dos setores agro, hidro, mineral, de especulação, enfim, energético. A gente coloca essa grande sigla para dizer esses setores que desde um período colonial até os dias de hoje violam territórios.

Raphael: A Maíra Rodrigues, que você acabou de ouvir, é quilombola, bióloga, mestre e doutoranda no Instituto de Geociências da Unicamp e estuda contaminação ambiental e ecotoxicologia. O seu interesse pelo tema surgiu olhando para sua própria comunidade, que fica na bacia do Vale do Ribeira, em São Paulo.

Maíra: Eu parto de uma perspectiva de que o racismo ambiental tem a ver com violações de direitos e o primeiro direito que foi violado foi o direito de existir.

Lucas Silva: É uma configuração de exclusão dessas populações e esse debate sobre racismo ambiental tem que ser entendido que ele começa 500 anos atrás. E essa ideia que o apocalipse vai vir, o fim do mundo, o colapso ambiental… Isso já acontece pra quem vem de ancestralidade africana, indígena, há 500 anos. Então, o racismo ambiental, por mais que a teoria surgiu na década de 80, ela é totalmente ligada ao processo de colonização.

Larah: Esse é o Lucas Silva. Ele é técnico de controle ambiental, mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Unicamp e estuda tecnologias africanas. Mas antes disso, o Lucas também é jongueiro, da tradicional comunidade do Jongo Dito Ribeiro, em Campinas.

[Trilha do Jongo]

Lucas: Antes do processo acadêmico, eu sou da comunidade do Jongo Dito Ribeiro e da Casa de Cultura Fazenda Roseira, um espaço localizado na cidade de Campinas, um espaço que nasceu a partir de uma ocupação e com o intuito de fazer uma luta antirracista, e aí na sua diversidade, desde a educação, como pensando o território, como pensando a universidade.

As primeiras teorias do racismo ambiental, partem da perspectiva que os impactos ambientais sobrecaem de forma diferente nas populações racializadas, de uma forma mais ampla, mais potencializada.

Maíra: Hoje também a gente fala muito de injustiça de emergências climáticas e como o racismo ambiental tem a ver com esse período de emergências climáticas, das chuvas e tal, a gente vê que a maior parte dessas populações, essa população negra, periférica, são as mulheres que mais sofrem com esses eventos. Mas também se a gente olhar para o passado, esse marcador não começa agora, nesse período, ele começa lá atrás com não o título da terra, com você não ter a posse nem de uma moradia digna, nem do seu território.

Raphael: O sistema legal que inviabiliza o acesso ao título da terra, que a Maíra comentou, é a Lei de Terras de 1850.

Antes dela, as pessoas ocupavam a terra de acordo com a distribuição da Coroa portuguesa – que eram concedidas principalmente pras elites portuguesas. Depois dessa Lei, o direito à terra passou a se dar exclusivamente pela relação de compra e venda.

Larah: E a gente sabe que com a promulgação da Lei Áurea, em 1888, a população negra que era escravizada não tinha dinheiro pra comprar terra. E isso só agravou ainda mais as desigualdades espaciais e econômicas e reforçou a concentração fundiária – que é um grande problema até hoje.

No campo e na cidade, isso literalmente marginalizou as populações racializadas.

Maíra: Um dos grandes marcadores de não direito à cidade é a questão da habitação.

E aí por que eu falo da grilagem? Porque ela é fundamental hoje quando a gente pensa nesse período de emergência climática, você pensa que existe um ciclo. A gente tem o Brasil como um dos grandes contribuintes também para o lançamento dos gases do efeito estufa, e essa grande contribuição vem do agronegócio, da agropecuária. E essa agropecuária é novamente determinada por conta da grilagem de terra, o desmatamento tem a ver totalmente com a grilagem de terra. Então é um ciclo que vem desde o período colonial, desde quem tem a posse da terra.

Larah: A crise climática e ambiental põe uma lupa nas desigualdades sociais e nos mostra que nem todo mundo é afetado da mesma forma pelos seus impactos. É aquela história de que num tá todo mundo no mesmo barco. Estamos sob a mesma tempestade. Alguns tão em iates, outros de colete salva-vidas e muitos, tão nadando pela própria vida.

Maíra: Você tem, por exemplo, na região norte, nas cidades, por exemplo, Belém, que foi uma região que foi aterrada, a população negra foi parar nas baixadas, que são esses lugares periféricos. Na cidade de São Paulo, a população negra também, a princípio ocupa uma região do centro, mas depois a todo momento é tentada ter uma dispersão e vai ocupar a região das várzeas, né, hoje principalmente essas áreas de proteção ambiental.

E se você ver no contexto de lugares com relevo igual no Rio de Janeiro, você vai ter a população ocupando os morros. Enfim, são diferentes lugares em que o nosso povo ocupa, mas sempre nesse lugar de marginalidade, de não território, lugares que não eram determinados, não é que morar no morro é o problema, desde que exista uma forma e uma adaptação para morar no morro, mas a grande questão é que esse morro não tem um planejamento dentro das políticas urbanas para que essa população viva.

Raphael: Além dos desastres socionaturais – deslizamentos, inundações, ondas de calor… que tão cada vez mais frequentes – a gente também consegue ver como o racismo ambiental se expressa em cenários de desastres tecnológicos. E aí são muitos exemplos: casos de contaminação ambiental industrial, de construção de hidrelétricas que afetam comunidades inteiras, de bairros que se afundaram por conta da extração de sal-gema e, como a gente viu em Mariana e Brumadinho, no rompimento de barragens por atividade da mineração.

Lucas: Quando você pensa que a população de Mariana, por exemplo, com o rompimento da barragem, com aquele crime que aconteceu em Mariana, a maior parte da população atingida é a população preta.

Maíra: O racismo ambiental, ele me afeta num lugar, quando eu começo a entender que um passivo de mineração de chumbo já há mais de 60 anos, ele contaminava predominante, impactava predominante pessoas, comunidades quilombolas, pessoas negras, comunidades tradicionais, né, povos tradicionais, povos e comunidades tradicionais indígenas e em sua maioria mulheres, mulheres negras, mulheres indígenas.

Larah: Na sua dissertação de mestrado, a Maíra detectou que o Rio Ribeira de Iguape, que atravessa o território quilombola de Ivaporunduva, ao qual a Maíra pertence, sofreu impacto da extração de ouro no século XX, sob responsabilidade da mineradora Plumbo.

Maíra: Por isso que trabalhar a contaminação ambiental para mim é uma ferramenta que me ajuda a entender qual é o impacto que se gera nesses territórios a longo tempo. O que a gente vem falando hoje é que é uma condenação de gerações.

Raphael: No mestrado, a Maíra estudou sobre fitorremediação, um processo que usa plantas para purificar ambientes contaminados. E ela descobriu que o feijão-de-porco, cultivado na sua comunidade, era capaz de auxiliar na recuperação das áreas degradadas nas margens do rio.

Essa foi uma das tecnologias que os quilombolas de Ivaporunduva encontraram pra diminuir a poluição no leito e remediar, de alguma forma o impacto, provocado pelo garimpo.

Maíra: Por isso que além da contaminação, que é algo que eu venho investigando, é pensar também formas de reparação, talvez mitigação, enfim, que é essas estratégias, esses métodos, essas técnicas de remediação. E aí as comunidades já fazem isso há muito tempo.

Larah: Essas populações, que foram retiradas dos seus territórios e trazidas como mão de obra escravizada, trouxeram diversos conhecimentos tecnológicos e científicos do Continente Africano, mas isso não costuma ser reconhecido. O apagamento dos saberes desses povos é justamente o que a Sueli Carneiro vai chamar de epistemicídio – um verdadeiro “extermínio do conhecimento”.

Lucas: Toda tecnologia, independente da tecnologia, ela está amparada numa cosmopercepção ou numa cosmovisão, se for capitalista ou ocidental, numa cosmovisão, porque a sociedade ocidental é baseada na visão, ela é uma sociedade que sua capacidade de análise está muito estruturada na visão, na escrita ou no corpo, diferente de outros povos.

Raphael: A gente costuma associar a ideia de tecnologia a algo novo, inédito, alguma engenhoca eletrônica…

Mas quando a gente pensa em tecnologia ancestral, a gente consegue olhar pra diversos conhecimentos, valores e práticas gerados pelos povos antigos.

Larah: E pra enfrentar um problema do tamanho da crise climática, a gente vai precisar olhar pras tecnologias sociais, pras técnicas, pros métodos e saberes desses povos. E entender e incorporar essas tecnologias, dominadas pelas comunidades tradicionais, implica em ressignificar o presente.

Lucas: Eu acho que é o essencial para a gente pensar em um enfrentamento ao racismo ambiental, a tecnologia seria uma consequência de uma forma de pensar, e aí a gente tem diversas tecnologias, quando a gente fala, por exemplo, bioconstrução.

Essa forma de olhar a natureza como um recurso, então a gente tem que olhar como os saberes tradicionais, seja os terreiros, seja os povos indígenas, seja os quilombos, enxergam essa, como que nos quilombos, por exemplo, do Vale do Ribeira, se faz roça, roça de coivara, dentro da floresta, a floresta continua em pé, e você tem uma diversidade de alimentos, uma biodiversidade enorme, o que tem para se aprender aí? Tem muita coisa, só que existe um poder hegemônico, um poder do capital, um poder do racismo.

São muitas disputas aí, né? Vai colocar aqui uma bioconstrução, uma forma de saber, né, ou uma forma de saber arcaica, né, e a gente não vai olhar para esses saberes como possibilidades aí de uma nova rota, de um novo caminho.

Maíra: Nitidamente a população que está no campo é um pouco menor, mas ela é fundamental e estratégica nesse extermínio, porque ela é fundamental no que a gente ainda tem, do que eu chamo de resiliência climática, do que a gente pode colocar aí. É como um amortecimento de tudo que a gente está vivendo com relação ao clima, com relação às questões ambientais.

Ainda são esses que salvaguardam a proteção. Não a partir da preservação somente, mas a partir da sua cultura, do seu modo de viver, é esse modo de vida daqueles que não são tão expressamente inúmeros no campo, mas que ainda estão guardando os remanescentes de floresta dos biomas que a gente tem ainda hoje, se talvez não fosse esse a gente estaria num cenário muito mais grave.

É óbvio que a natureza se adapta, mas a gente tem que entender como é que faz essa adaptação hoje e mostrar, olha, esse é o caminho.

Raphael: Este episódio foi produzido e roteirizado por Diana Mussi, Poliana Mendes, Talita Gantus e por nós, Raphael Alves e Larah Camargo, que damos voz ao episódio de hoje.

A revisão é da Simone Pallone, coordenadora do Oxigênio. Este material foi gerado como trabalho final das disciplinas de “Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente”, ministrada pela professora Rosana Corazza, e para Oficina de Multimeios, ministrada pela professora Simone Pallone, pelo Marcos Botelho, pelo Diego Caroca e pelo Kleber Casablanca, no curso de Especialização em Jornalismo Científico do Labjor da Unicamp.

Larah: Este episódio contou com o apoio técnico do Isaac Luz e a edição é por conta da Elisa Valderano.
Escolhemos o dia de hoje, 20 de novembro, para lançar este episódio como uma homenagem ao Dia da Consciência Negra.

O Oxigênio tratou deste tema também na série “Escuta Clima”, nos episódios 4 e 5, sobre as vítimas da vulnerabilidade climática. Vale a pena escutar.

Raphael: O Oxigênio é um podcast produzido pelos alunos do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp e colaboradores externos. Tem parceria com a Secretaria Executiva de Comunicação da Unicamp e apoio do Serviço de Auxílio ao Estudante da Unicamp.

Você encontra todos os episódios no site oxigenio.comciencia.br e também na sua plataforma de podcasts favorita. Procura a gente nas redes sociais: no Instagram e no Facebook você nos encontra como Oxigenio Podcast. Segue lá pra não perder nenhum episódio e muito obrigada por nos escutar.

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Em homenagem ao Dia da Consciência Negra, o programa mergulha nas raízes históricas do racismo ambiental e em como ele afeta, de forma desproporcional, populações negras, quilombolas e indígenas no Brasil. O episódio também destaca a resistência dessas comunidades e suas contribuições para a preservação ambiental em meio à crise climática.

No episódio, Maíra Rodrigues, quilombola, bióloga e pesquisadora do Instituto de Geociências da Unicamp, e Lucas Silva, técnico em controle ambiental e jongueiro da comunidade Jongo Dito Ribeiro são entrevistados.

Larah Camargo: O ano era 1982. Em Afton, na Carolina do Norte, Estados Unidos, um grupo de mulheres deitava na estrada que dava acesso ao condado para impedir a passagem de dezenas de caminhões.

Esses caminhões não levavam qualquer carga: eram toneladas de terra contaminadas por bifenilas policloradas, os chamados PCBs.

[vinheta Oxigênio]

Raphael Alves: Os PCBs são produtos químicos sintéticos que foram amplamente utilizados por diferentes indústrias no século 20. Desde tintas, plásticos, adesivos, até em refrigerantes…

Já na década de 1970, cientistas descobriram que eles eram extremamente tóxicos e se acumulavam no ambiente. Até 1979, a sua produção já tinha sido completamente banida no país e em diversas partes do mundo.

Se essas substâncias são inaladas ou absorvidas pela pele, elas podem causar câncer, danos cerebrais, nascimentos prematuros com deformações e outros efeitos negativos na saúde humana.

No meio ambiente, os PCBs levam muitas décadas para se degradar, e o seu descarte inapropriado pode contaminar o solo, os leitos dos rios, diferentes espécies de animais e toda uma cadeia alimentar de uma região.

Larah: Eu acho que você também não ia querer ter esse tipo de descarte no seu quintal. E foi exatamente por isso que as mulheres de Afton tavam deitadas na estrada naquele 16 de setembro. Elas tavam protestando contra a criação de um lixão no qual iam despejar esse material tóxico, próximo a área onde essas famílias moravam.
Mais de 500 manifestantes foram presos nessa ocasião. Mas o protesto não conseguiu evitar o aterro de lixo, e o governo começou a empilhar a terra contaminada em uma área equivalente a quase 9 campos de futebol – escavando em terras que eram agrícolas.

E tem um “detalhe” que eu ainda não te contei: 70% da população de Afton na época era composta por pessoas negras – e que, na sua grande maioria, viviam abaixo da linha da pobreza.

Essa foi a primeira vez que a gente ouviu a expressão “racismo ambiental”. O Reverendo Benjamin Franklin, que tava presente na manifestação em Afton, usou esse termo para se referir ao fato de que a degradação ambiental atinge principalmente os grupos étnicos e sociais mais vulneráveis.

Esse episódio virou um marco na luta por Justiça Climática e depois inspirou as ideias do Robert Bullard, outro grande nome do ativismo ambiental negro e que conceitualizou o racismo ambiental nas suas obras.

Raphael: Quando a gente olha pro Brasil dos anos 70, também estavam acontecendo lutas muito importantes pelos territórios dos povos tradicionais e indígenas – que mais tarde foram reconhecidas como movimentos ambientais. Um exemplo emblemático foi a resistência dos seringueiros, liderados pelo Chico Mendes, que depois culminou na criação de reservas extrativistas na Amazônia.
Mas a gente sabe que o Brasil de hoje, assim como muitos países, ainda segue um modelo de desenvolvimento que prioriza o crescimento econômico em detrimento da preservação ambiental e dos direitos dessas populações.

Larah: Grandes empreendimentos nacionais e multinacionais forçam o deslocamento de comunidades indígenas, ribeirinhas e quilombolas e transformam os seus territórios em alvo de especulação e degradação.

Assim como as mulheres de Afton, muitas dessas populações lidam com o drama de viver perto de áreas de risco de desastres e de impacto ambiental – as chamadas “zonas de sacrifício”.

Maíra Rodrigues: O racismo ambiental perpassa por essas violações de direitos que acontecem desde um período colonial, onde a gente tem as comunidades quilombolas, os povos tradicionais num lugar de salvaguarda desses territórios, mas que muitos outros são impactados por diversos, a gente chama hoje na militância quilombola, dos setores agro, hidro, mineral, de especulação, enfim, energético. A gente coloca essa grande sigla para dizer esses setores que desde um período colonial até os dias de hoje violam territórios.

Raphael: A Maíra Rodrigues, que você acabou de ouvir, é quilombola, bióloga, mestre e doutoranda no Instituto de Geociências da Unicamp e estuda contaminação ambiental e ecotoxicologia. O seu interesse pelo tema surgiu olhando para sua própria comunidade, que fica na bacia do Vale do Ribeira, em São Paulo.

Maíra: Eu parto de uma perspectiva de que o racismo ambiental tem a ver com violações de direitos e o primeiro direito que foi violado foi o direito de existir.

Lucas Silva: É uma configuração de exclusão dessas populações e esse debate sobre racismo ambiental tem que ser entendido que ele começa 500 anos atrás. E essa ideia que o apocalipse vai vir, o fim do mundo, o colapso ambiental… Isso já acontece pra quem vem de ancestralidade africana, indígena, há 500 anos. Então, o racismo ambiental, por mais que a teoria surgiu na década de 80, ela é totalmente ligada ao processo de colonização.

Larah: Esse é o Lucas Silva. Ele é técnico de controle ambiental, mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Unicamp e estuda tecnologias africanas. Mas antes disso, o Lucas também é jongueiro, da tradicional comunidade do Jongo Dito Ribeiro, em Campinas.

[Trilha do Jongo]

Lucas: Antes do processo acadêmico, eu sou da comunidade do Jongo Dito Ribeiro e da Casa de Cultura Fazenda Roseira, um espaço localizado na cidade de Campinas, um espaço que nasceu a partir de uma ocupação e com o intuito de fazer uma luta antirracista, e aí na sua diversidade, desde a educação, como pensando o território, como pensando a universidade.

As primeiras teorias do racismo ambiental, partem da perspectiva que os impactos ambientais sobrecaem de forma diferente nas populações racializadas, de uma forma mais ampla, mais potencializada.

Maíra: Hoje também a gente fala muito de injustiça de emergências climáticas e como o racismo ambiental tem a ver com esse período de emergências climáticas, das chuvas e tal, a gente vê que a maior parte dessas populações, essa população negra, periférica, são as mulheres que mais sofrem com esses eventos. Mas também se a gente olhar para o passado, esse marcador não começa agora, nesse período, ele começa lá atrás com não o título da terra, com você não ter a posse nem de uma moradia digna, nem do seu território.

Raphael: O sistema legal que inviabiliza o acesso ao título da terra, que a Maíra comentou, é a Lei de Terras de 1850.

Antes dela, as pessoas ocupavam a terra de acordo com a distribuição da Coroa portuguesa – que eram concedidas principalmente pras elites portuguesas. Depois dessa Lei, o direito à terra passou a se dar exclusivamente pela relação de compra e venda.

Larah: E a gente sabe que com a promulgação da Lei Áurea, em 1888, a população negra que era escravizada não tinha dinheiro pra comprar terra. E isso só agravou ainda mais as desigualdades espaciais e econômicas e reforçou a concentração fundiária – que é um grande problema até hoje.

No campo e na cidade, isso literalmente marginalizou as populações racializadas.

Maíra: Um dos grandes marcadores de não direito à cidade é a questão da habitação.

E aí por que eu falo da grilagem? Porque ela é fundamental hoje quando a gente pensa nesse período de emergência climática, você pensa que existe um ciclo. A gente tem o Brasil como um dos grandes contribuintes também para o lançamento dos gases do efeito estufa, e essa grande contribuição vem do agronegócio, da agropecuária. E essa agropecuária é novamente determinada por conta da grilagem de terra, o desmatamento tem a ver totalmente com a grilagem de terra. Então é um ciclo que vem desde o período colonial, desde quem tem a posse da terra.

Larah: A crise climática e ambiental põe uma lupa nas desigualdades sociais e nos mostra que nem todo mundo é afetado da mesma forma pelos seus impactos. É aquela história de que num tá todo mundo no mesmo barco. Estamos sob a mesma tempestade. Alguns tão em iates, outros de colete salva-vidas e muitos, tão nadando pela própria vida.

Maíra: Você tem, por exemplo, na região norte, nas cidades, por exemplo, Belém, que foi uma região que foi aterrada, a população negra foi parar nas baixadas, que são esses lugares periféricos. Na cidade de São Paulo, a população negra também, a princípio ocupa uma região do centro, mas depois a todo momento é tentada ter uma dispersão e vai ocupar a região das várzeas, né, hoje principalmente essas áreas de proteção ambiental.

E se você ver no contexto de lugares com relevo igual no Rio de Janeiro, você vai ter a população ocupando os morros. Enfim, são diferentes lugares em que o nosso povo ocupa, mas sempre nesse lugar de marginalidade, de não território, lugares que não eram determinados, não é que morar no morro é o problema, desde que exista uma forma e uma adaptação para morar no morro, mas a grande questão é que esse morro não tem um planejamento dentro das políticas urbanas para que essa população viva.

Raphael: Além dos desastres socionaturais – deslizamentos, inundações, ondas de calor… que tão cada vez mais frequentes – a gente também consegue ver como o racismo ambiental se expressa em cenários de desastres tecnológicos. E aí são muitos exemplos: casos de contaminação ambiental industrial, de construção de hidrelétricas que afetam comunidades inteiras, de bairros que se afundaram por conta da extração de sal-gema e, como a gente viu em Mariana e Brumadinho, no rompimento de barragens por atividade da mineração.

Lucas: Quando você pensa que a população de Mariana, por exemplo, com o rompimento da barragem, com aquele crime que aconteceu em Mariana, a maior parte da população atingida é a população preta.

Maíra: O racismo ambiental, ele me afeta num lugar, quando eu começo a entender que um passivo de mineração de chumbo já há mais de 60 anos, ele contaminava predominante, impactava predominante pessoas, comunidades quilombolas, pessoas negras, comunidades tradicionais, né, povos tradicionais, povos e comunidades tradicionais indígenas e em sua maioria mulheres, mulheres negras, mulheres indígenas.

Larah: Na sua dissertação de mestrado, a Maíra detectou que o Rio Ribeira de Iguape, que atravessa o território quilombola de Ivaporunduva, ao qual a Maíra pertence, sofreu impacto da extração de ouro no século XX, sob responsabilidade da mineradora Plumbo.

Maíra: Por isso que trabalhar a contaminação ambiental para mim é uma ferramenta que me ajuda a entender qual é o impacto que se gera nesses territórios a longo tempo. O que a gente vem falando hoje é que é uma condenação de gerações.

Raphael: No mestrado, a Maíra estudou sobre fitorremediação, um processo que usa plantas para purificar ambientes contaminados. E ela descobriu que o feijão-de-porco, cultivado na sua comunidade, era capaz de auxiliar na recuperação das áreas degradadas nas margens do rio.

Essa foi uma das tecnologias que os quilombolas de Ivaporunduva encontraram pra diminuir a poluição no leito e remediar, de alguma forma o impacto, provocado pelo garimpo.

Maíra: Por isso que além da contaminação, que é algo que eu venho investigando, é pensar também formas de reparação, talvez mitigação, enfim, que é essas estratégias, esses métodos, essas técnicas de remediação. E aí as comunidades já fazem isso há muito tempo.

Larah: Essas populações, que foram retiradas dos seus territórios e trazidas como mão de obra escravizada, trouxeram diversos conhecimentos tecnológicos e científicos do Continente Africano, mas isso não costuma ser reconhecido. O apagamento dos saberes desses povos é justamente o que a Sueli Carneiro vai chamar de epistemicídio – um verdadeiro “extermínio do conhecimento”.

Lucas: Toda tecnologia, independente da tecnologia, ela está amparada numa cosmopercepção ou numa cosmovisão, se for capitalista ou ocidental, numa cosmovisão, porque a sociedade ocidental é baseada na visão, ela é uma sociedade que sua capacidade de análise está muito estruturada na visão, na escrita ou no corpo, diferente de outros povos.

Raphael: A gente costuma associar a ideia de tecnologia a algo novo, inédito, alguma engenhoca eletrônica…

Mas quando a gente pensa em tecnologia ancestral, a gente consegue olhar pra diversos conhecimentos, valores e práticas gerados pelos povos antigos.

Larah: E pra enfrentar um problema do tamanho da crise climática, a gente vai precisar olhar pras tecnologias sociais, pras técnicas, pros métodos e saberes desses povos. E entender e incorporar essas tecnologias, dominadas pelas comunidades tradicionais, implica em ressignificar o presente.

Lucas: Eu acho que é o essencial para a gente pensar em um enfrentamento ao racismo ambiental, a tecnologia seria uma consequência de uma forma de pensar, e aí a gente tem diversas tecnologias, quando a gente fala, por exemplo, bioconstrução.

Essa forma de olhar a natureza como um recurso, então a gente tem que olhar como os saberes tradicionais, seja os terreiros, seja os povos indígenas, seja os quilombos, enxergam essa, como que nos quilombos, por exemplo, do Vale do Ribeira, se faz roça, roça de coivara, dentro da floresta, a floresta continua em pé, e você tem uma diversidade de alimentos, uma biodiversidade enorme, o que tem para se aprender aí? Tem muita coisa, só que existe um poder hegemônico, um poder do capital, um poder do racismo.

São muitas disputas aí, né? Vai colocar aqui uma bioconstrução, uma forma de saber, né, ou uma forma de saber arcaica, né, e a gente não vai olhar para esses saberes como possibilidades aí de uma nova rota, de um novo caminho.

Maíra: Nitidamente a população que está no campo é um pouco menor, mas ela é fundamental e estratégica nesse extermínio, porque ela é fundamental no que a gente ainda tem, do que eu chamo de resiliência climática, do que a gente pode colocar aí. É como um amortecimento de tudo que a gente está vivendo com relação ao clima, com relação às questões ambientais.

Ainda são esses que salvaguardam a proteção. Não a partir da preservação somente, mas a partir da sua cultura, do seu modo de viver, é esse modo de vida daqueles que não são tão expressamente inúmeros no campo, mas que ainda estão guardando os remanescentes de floresta dos biomas que a gente tem ainda hoje, se talvez não fosse esse a gente estaria num cenário muito mais grave.

É óbvio que a natureza se adapta, mas a gente tem que entender como é que faz essa adaptação hoje e mostrar, olha, esse é o caminho.

Raphael: Este episódio foi produzido e roteirizado por Diana Mussi, Poliana Mendes, Talita Gantus e por nós, Raphael Alves e Larah Camargo, que damos voz ao episódio de hoje.

A revisão é da Simone Pallone, coordenadora do Oxigênio. Este material foi gerado como trabalho final das disciplinas de “Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente”, ministrada pela professora Rosana Corazza, e para Oficina de Multimeios, ministrada pela professora Simone Pallone, pelo Marcos Botelho, pelo Diego Caroca e pelo Kleber Casablanca, no curso de Especialização em Jornalismo Científico do Labjor da Unicamp.

Larah: Este episódio contou com o apoio técnico do Isaac Luz e a edição é por conta da Elisa Valderano.
Escolhemos o dia de hoje, 20 de novembro, para lançar este episódio como uma homenagem ao Dia da Consciência Negra.

O Oxigênio tratou deste tema também na série “Escuta Clima”, nos episódios 4 e 5, sobre as vítimas da vulnerabilidade climática. Vale a pena escutar.

Raphael: O Oxigênio é um podcast produzido pelos alunos do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp e colaboradores externos. Tem parceria com a Secretaria Executiva de Comunicação da Unicamp e apoio do Serviço de Auxílio ao Estudante da Unicamp.

Você encontra todos os episódios no site oxigenio.comciencia.br e também na sua plataforma de podcasts favorita. Procura a gente nas redes sociais: no Instagram e no Facebook você nos encontra como Oxigenio Podcast. Segue lá pra não perder nenhum episódio e muito obrigada por nos escutar.

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