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Teatro: peça celebra em Paris memórias de domésticas exploradas por diplomatas brasileiros na França
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Até o começo dos anos 2000, os diplomatas brasileiros alocados em Paris dispunham de um privilégio, abolido durante o primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva: trazer consigo para a capital francesa duas empregadas do Brasil. Sem falar francês, isoladas pela distância e sem redes sociais, muitas delas viveram em regimes comparáveis à semi-escravidão. A peça "Ressonâncias: Revoltas Silenciosas", do ator e músico Yure Romão, busca dar visibilidade a essas protagonistas invisibilizadas pelo silêncio.
"O projeto começou em 2022, durante um café na casa de uma amiga, a primeira pessoa que conheci aqui em Paris. Por questões de anonimato, já que os diplomatas com quem algumas dessas mulheres trabalharam ainda estão em atividade, vou chamá-la de Maria", conta o diretor do espetáculo, o ator, músico e encenador Yure Romão.
"Naquele dia, estávamos conversando sobre política. Era o dia da eleição presidencial na França, e a extrema direita estava ganhando força. Eu estava muito contrariado, sem entender como brasileiros vivendo aqui podiam votar na extrema direita no Brasil, ou como franceses optavam por isso", contextualiza.
"Maria começou a compartilhar experiências pessoais e de amigas próximas", relembra Romão. "Ela contou que conhecia muitas famílias brasileiras, especialmente de diplomatas, que nos anos 2000 tinham o direito de trazer duas empregadas domésticas ao país onde estavam alocadas", detalha.
"Eu não sabia disso. Maria explicou que, até 2003, isso era um privilégio concedido, mas que foi cortado no governo Lula, junto com outros benefícios, como auxílio-moradia. Segundo a análise dela, isso gerou um sentimento anti-Lula entre muitos diplomatas", avalia o diretor.
Algumas recebiam salários bem inferiores ou nada, e muitas viviam isoladas, longe das famílias, num contexto análogo à escravidão.
"Essas empregadas domésticas vinham com a promessa de receber um salário de US$ 800 e moradia digna. No entanto, ao chegarem aqui, a realidade era outra", conta.
"Algumas recebiam salários bem inferiores ou nada, e muitas viviam isoladas, longe das famílias, num contexto análogo à escravidão. Nos anos 2000, a comunicação era difícil — sem celulares ou WhatsApp, elas ficavam ainda mais isoladas", destaca o artista brasileiro, que desenvolve diversas residências com artistas em ex-colônias francesas, como Guadalupe e Martinica.
"Naquela tarde, Maria me apresentou duas amigas que passaram por essas situações. Elas expressaram o desejo de que suas experiências fossem conhecidas, não só como registro histórico, mas para que filhos, netos e outras gerações soubessem o que viveram", relata Romão.
Histórias reais
No cruzamento da narrativa e da pesquisa documental, com dramaturgia fortemente marcada pela presença da música popular, do Brasil às ex-colônias francesas, o espetáculo resgata histórias reais de empregadas domésticas brasileiras na França, como conta Yure Romão.
"Decidi então transformar essas histórias em um espetáculo, pois sou diretor e músico, e meu trabalho é centrado no teatro e na música. Paralelamente, começamos a trabalhar em um livro, baseado nas transcrições das entrevistas. Tanto o espetáculo quanto o livro respeitam o anonimato, com cada mulher escolhendo um pseudônimo para garantir segurança e evitar retaliações", conta o diretor.
Uma das mulheres contou que dormia na lavanderia, embaixo de uma tábua de passar roupa.
"As histórias que elas contam revelam realidades dolorosas. Muitas vieram seduzidas pela ideia de ganhar US$ 800 — uma quantia impressionante comparada ao salário mínimo da época no Brasil. Algumas eram trabalhadoras domésticas; outras, como enfermeiras e administradoras, que aceitaram a proposta por parecer mais vantajosa. Mas ao chegarem aqui, enfrentaram promessas não cumpridas: salários retidos, condições precárias de moradia e isolamento", relata o diretor, em entrevista à RFI.
Os abusos aconteciam de formas variadas, como relata o diretor do espetáculo. "Uma das mulheres contou que dormia na lavanderia, embaixo de uma tábua de passar roupa. Outras relataram violências físicas e psicológicas, agravadas pela distância da família e pela dificuldade de pedir ajuda. O diretor conta ainda que "essas situações ocorriam dentro de um quadro legal, já que havia contratos, mas que na prática eram desrespeitados".
Entrelaçamento de dramaturgias
Yure Romão detalha o entrelaçamento de dramaturgias que ele teceu, num diálogo com a autora antilhana Françoise Ega, através de seu livro “Cartas a uma negra”, onde ela endereça cartas à escritora brasileira Carolina Maria de Jesus.
"Ao longo do processo, percebi semelhanças com outras migrações institucionais, como as descritas pela escritora martinicana Françoise Ega, em seu livro Cartas a uma negra. Nele, ela relata a experiência de mulheres das Antilhas Francesas, nos anos 1960, que também vieram para a França com promessas de melhores condições, mas encontraram exploração. A conexão entre essas histórias, separadas por décadas e continentes, revela padrões profundos de desigualdade e abuso", analisa Yure Romão.
Visibilidade
"O espetáculo busca dar visibilidade a essas mulheres e suas histórias, enquanto o livro serve como registro memorial. Algumas delas decidiram que suas famílias descobrirão o que viveram apenas ao assistir à peça ou ler o livro. Elas desejam que suas histórias não se percam e que sirvam como alerta para que outras mulheres não enfrentem as mesmas dificuldades", ressalta Romão.
"Não sinto medo de expor essas questões, embora elas revelem um lado sombrio da diplomacia brasileira", diz o diretor. "Estamos protegidos pelo anonimato e pela importância do trabalho. Essas histórias fazem parte da história do Brasil e da diplomacia, e acredito que merecem ser contadas", insiste.
"Estamos planejando levar o espetáculo ao Brasil em 2025, durante o Ano do Brasil na França. Será uma versão em português, e algumas das mulheres que entrevistei poderão assisti-lo. Espero que o impacto seja tão transformador lá quanto tem sido aqui", afirma Romão.
"Muitas vezes, quando falamos do projeto, deixamos claro que não se trata de 'dar voz' a essas mulheres. Elas já têm muita voz e falam muito. E isso é maravilhoso. Acho que o nosso papel é mais sobre escutar essas vozes, amplificá-las e fazê-las ressoar", diz a atriz, marionetista e contadora de histórias Ana Laura Nascimento.
"Enquanto mulher, filha e neta, essa questão me atravessa profundamente. Minha avó foi empregada doméstica, e minha madrinha ainda é, vivendo no interior de Pernambuco", afirma. "Mesmo com a PEC das Domésticas, muita coisa não mudou, especialmente nos interiores. Muitas empregadas domésticas ainda não têm seus direitos reconhecidos. É algo muito próximo para mim, porque tenho pessoas da família que enfrentam essas condições", sintetiza a artista brasileira, que desenvolveu seus estudos e boa parte de sua prática teatral na França.
"Quando falo, crio ou produzo peças sobre temas difíceis como esse, o que mais me motiva é explorar como essas pessoas conseguiram resistir e continuar. Quero falar sobre o que foi necessário para elas seguirem em frente, mesmo diante de tantas adversidades", destaca Nascimento.
"Tecnologias de sobrevivência"
"Vivemos em um país que enfrentou 400 anos de escravidão. Se estamos aqui hoje, é porque criamos tecnologias de sobrevivência, maneiras de seguir vivendo", avalia Nascimento. "Não foi só pela luta, mas também pela celebração, pela criação de subjetividades e de espaços onde antes não havia nada. Foi essa capacidade de criação que nos manteve vivos", aponta.
"Além disso, ontem, no início do ensaio, falamos sobre como essas histórias nos atravessam e nos emocionam profundamente. Elas nos deixam frágeis, mas também nos impulsionam", sublinha Nascimento. "Trabalhamos com artistas incríveis, com muita técnica, e isso nos permite transformar essa emoção em algo produtivo. Essa emoção se torna adubo, alimentando a nossa técnica e o nosso trabalho", conclui a atriz.
Depois da temporada francesa, a peça "Ressonâncias, revoltas silenciosas" deve desembarcar em 2025 no Brasil, dentro do calendário que comemora os 200 anos de relações diplomáticas entre os dois países.
71 episódios
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Até o começo dos anos 2000, os diplomatas brasileiros alocados em Paris dispunham de um privilégio, abolido durante o primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva: trazer consigo para a capital francesa duas empregadas do Brasil. Sem falar francês, isoladas pela distância e sem redes sociais, muitas delas viveram em regimes comparáveis à semi-escravidão. A peça "Ressonâncias: Revoltas Silenciosas", do ator e músico Yure Romão, busca dar visibilidade a essas protagonistas invisibilizadas pelo silêncio.
"O projeto começou em 2022, durante um café na casa de uma amiga, a primeira pessoa que conheci aqui em Paris. Por questões de anonimato, já que os diplomatas com quem algumas dessas mulheres trabalharam ainda estão em atividade, vou chamá-la de Maria", conta o diretor do espetáculo, o ator, músico e encenador Yure Romão.
"Naquele dia, estávamos conversando sobre política. Era o dia da eleição presidencial na França, e a extrema direita estava ganhando força. Eu estava muito contrariado, sem entender como brasileiros vivendo aqui podiam votar na extrema direita no Brasil, ou como franceses optavam por isso", contextualiza.
"Maria começou a compartilhar experiências pessoais e de amigas próximas", relembra Romão. "Ela contou que conhecia muitas famílias brasileiras, especialmente de diplomatas, que nos anos 2000 tinham o direito de trazer duas empregadas domésticas ao país onde estavam alocadas", detalha.
"Eu não sabia disso. Maria explicou que, até 2003, isso era um privilégio concedido, mas que foi cortado no governo Lula, junto com outros benefícios, como auxílio-moradia. Segundo a análise dela, isso gerou um sentimento anti-Lula entre muitos diplomatas", avalia o diretor.
Algumas recebiam salários bem inferiores ou nada, e muitas viviam isoladas, longe das famílias, num contexto análogo à escravidão.
"Essas empregadas domésticas vinham com a promessa de receber um salário de US$ 800 e moradia digna. No entanto, ao chegarem aqui, a realidade era outra", conta.
"Algumas recebiam salários bem inferiores ou nada, e muitas viviam isoladas, longe das famílias, num contexto análogo à escravidão. Nos anos 2000, a comunicação era difícil — sem celulares ou WhatsApp, elas ficavam ainda mais isoladas", destaca o artista brasileiro, que desenvolve diversas residências com artistas em ex-colônias francesas, como Guadalupe e Martinica.
"Naquela tarde, Maria me apresentou duas amigas que passaram por essas situações. Elas expressaram o desejo de que suas experiências fossem conhecidas, não só como registro histórico, mas para que filhos, netos e outras gerações soubessem o que viveram", relata Romão.
Histórias reais
No cruzamento da narrativa e da pesquisa documental, com dramaturgia fortemente marcada pela presença da música popular, do Brasil às ex-colônias francesas, o espetáculo resgata histórias reais de empregadas domésticas brasileiras na França, como conta Yure Romão.
"Decidi então transformar essas histórias em um espetáculo, pois sou diretor e músico, e meu trabalho é centrado no teatro e na música. Paralelamente, começamos a trabalhar em um livro, baseado nas transcrições das entrevistas. Tanto o espetáculo quanto o livro respeitam o anonimato, com cada mulher escolhendo um pseudônimo para garantir segurança e evitar retaliações", conta o diretor.
Uma das mulheres contou que dormia na lavanderia, embaixo de uma tábua de passar roupa.
"As histórias que elas contam revelam realidades dolorosas. Muitas vieram seduzidas pela ideia de ganhar US$ 800 — uma quantia impressionante comparada ao salário mínimo da época no Brasil. Algumas eram trabalhadoras domésticas; outras, como enfermeiras e administradoras, que aceitaram a proposta por parecer mais vantajosa. Mas ao chegarem aqui, enfrentaram promessas não cumpridas: salários retidos, condições precárias de moradia e isolamento", relata o diretor, em entrevista à RFI.
Os abusos aconteciam de formas variadas, como relata o diretor do espetáculo. "Uma das mulheres contou que dormia na lavanderia, embaixo de uma tábua de passar roupa. Outras relataram violências físicas e psicológicas, agravadas pela distância da família e pela dificuldade de pedir ajuda. O diretor conta ainda que "essas situações ocorriam dentro de um quadro legal, já que havia contratos, mas que na prática eram desrespeitados".
Entrelaçamento de dramaturgias
Yure Romão detalha o entrelaçamento de dramaturgias que ele teceu, num diálogo com a autora antilhana Françoise Ega, através de seu livro “Cartas a uma negra”, onde ela endereça cartas à escritora brasileira Carolina Maria de Jesus.
"Ao longo do processo, percebi semelhanças com outras migrações institucionais, como as descritas pela escritora martinicana Françoise Ega, em seu livro Cartas a uma negra. Nele, ela relata a experiência de mulheres das Antilhas Francesas, nos anos 1960, que também vieram para a França com promessas de melhores condições, mas encontraram exploração. A conexão entre essas histórias, separadas por décadas e continentes, revela padrões profundos de desigualdade e abuso", analisa Yure Romão.
Visibilidade
"O espetáculo busca dar visibilidade a essas mulheres e suas histórias, enquanto o livro serve como registro memorial. Algumas delas decidiram que suas famílias descobrirão o que viveram apenas ao assistir à peça ou ler o livro. Elas desejam que suas histórias não se percam e que sirvam como alerta para que outras mulheres não enfrentem as mesmas dificuldades", ressalta Romão.
"Não sinto medo de expor essas questões, embora elas revelem um lado sombrio da diplomacia brasileira", diz o diretor. "Estamos protegidos pelo anonimato e pela importância do trabalho. Essas histórias fazem parte da história do Brasil e da diplomacia, e acredito que merecem ser contadas", insiste.
"Estamos planejando levar o espetáculo ao Brasil em 2025, durante o Ano do Brasil na França. Será uma versão em português, e algumas das mulheres que entrevistei poderão assisti-lo. Espero que o impacto seja tão transformador lá quanto tem sido aqui", afirma Romão.
"Muitas vezes, quando falamos do projeto, deixamos claro que não se trata de 'dar voz' a essas mulheres. Elas já têm muita voz e falam muito. E isso é maravilhoso. Acho que o nosso papel é mais sobre escutar essas vozes, amplificá-las e fazê-las ressoar", diz a atriz, marionetista e contadora de histórias Ana Laura Nascimento.
"Enquanto mulher, filha e neta, essa questão me atravessa profundamente. Minha avó foi empregada doméstica, e minha madrinha ainda é, vivendo no interior de Pernambuco", afirma. "Mesmo com a PEC das Domésticas, muita coisa não mudou, especialmente nos interiores. Muitas empregadas domésticas ainda não têm seus direitos reconhecidos. É algo muito próximo para mim, porque tenho pessoas da família que enfrentam essas condições", sintetiza a artista brasileira, que desenvolveu seus estudos e boa parte de sua prática teatral na França.
"Quando falo, crio ou produzo peças sobre temas difíceis como esse, o que mais me motiva é explorar como essas pessoas conseguiram resistir e continuar. Quero falar sobre o que foi necessário para elas seguirem em frente, mesmo diante de tantas adversidades", destaca Nascimento.
"Tecnologias de sobrevivência"
"Vivemos em um país que enfrentou 400 anos de escravidão. Se estamos aqui hoje, é porque criamos tecnologias de sobrevivência, maneiras de seguir vivendo", avalia Nascimento. "Não foi só pela luta, mas também pela celebração, pela criação de subjetividades e de espaços onde antes não havia nada. Foi essa capacidade de criação que nos manteve vivos", aponta.
"Além disso, ontem, no início do ensaio, falamos sobre como essas histórias nos atravessam e nos emocionam profundamente. Elas nos deixam frágeis, mas também nos impulsionam", sublinha Nascimento. "Trabalhamos com artistas incríveis, com muita técnica, e isso nos permite transformar essa emoção em algo produtivo. Essa emoção se torna adubo, alimentando a nossa técnica e o nosso trabalho", conclui a atriz.
Depois da temporada francesa, a peça "Ressonâncias, revoltas silenciosas" deve desembarcar em 2025 no Brasil, dentro do calendário que comemora os 200 anos de relações diplomáticas entre os dois países.
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