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Revelações a partir do mictório das letras lusas. Uma conversa com João Oliveira Duarte
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Se o nosso tempo não nos diz puto, todos os dias parecem ser domingo neste povoado à beira-mar e que eles se esqueceram de bombardear. Era mais ou menos isto que ouvíamos de uma dessas canções da nossa adolescência, e de algum modo batia certo, pois a sensação de desenraizamento deixa margem a uma estranha ânsia de aniquilação. É isso o que secretamente desejávamos quando se falava num ano novo: que se pudesse limpar com um pano molhado aquilo que ficou escrito no quadro, essas noções limitadas e desidratadas que nos obrigavam a decorar. Hoje faz-nos rir todo o tipo de imbecilidades com que eles nos martirizavam, e parece que até esse passado, com as suas estruturas inquestionáveis e misteriosamente harmónicas, se encontra destroçado e a ruir diante dos nossos olhos. E, no entanto, nem isso nos alivia da ansiedade histórica com que vivemos. É ridícula a ideia de se acolher numa data específica uma ideia de renovação, um futuro refeito de todas as decepções que carregamos, e sobretudo fazê-lo segundo um sistema de registro completamente arbitrário. Mesmo depois de ultrapassarmos a esperança, que foi durante muito tempo a nossa principal fraqueza, o problema com as datas em geral, as epoquizações e balanços que fazemos, é que não podemos programar os nossos apocalipses. A 1 de janeiro de 1916, Gramsci publicou uma coluna intitulada "Odeio o dia de Ano Novo" no jornal oficial do Partido Socialista Italiano, "Avanti!" Começava assim: "Todas as manhãs, quando desperto de novo sob o céu nublado, sinto que para mim é dia de Ano Novo. É por isso que detesto estes anos novos que caem como prazos vencidos, que transformam a vida e o espírito humano numa empresa comercial, com o seu saldo final bem arrumado, os seus montantes pendentes, o seu orçamento para a nova gestão. Fazem-nos perder a continuidade da vida e do espírito. Acabamos por pensar seriamente que entre um ano e o outro há uma pausa, que começa uma nova história; tomamos resoluções e arrependemo-nos da nossa irresolução, etc., etc." As datas que assinalamos, no entender de Gramsci, não passam de "penas de prisão espiritual" que nos foram impostas pelos "nossos tolos antepassados". Tornaram-se "invasivas e fossilizantes", forçando a vida a repetir séries de "ritmos colectivos obrigatórios". Era bom que a desculpa de um ano novo pudesse servir para fechar esse parêntesis da imbecilidade mascarada de civilização, da anemia mascarada de fulgor, e servisse para forçar um intervalo, um período de suspensão e exame crítico, ou até um exorcismo. Dos milhares de acontecimentos que sobrevêm todos os anos nunca poderia resultar uma harmonia perfeita, empurrando no mesmo sentido. Mas cada vez são mais as coisas que não foram digeridas, e que se guardam em nós de forma atropelada, gerando uma sensação de impotência ou indisponibilidade. Prisioneiros de um regime de aceleração maníaca, só o exorcismo revelaria uma reacção em força perante esta forma de possessão. Mas se esperamos dos intelectuais com banca e atestado, dos críticos e demais panegiristas profissionais que se ocupem destas tarefas, estamos bem lixados. Contudo, há uma indisposição geral que parece abrir margem para a organização do nosso pessimismo. Na Cidade cosmopolita, há focos de desordem, a inquietação respira-se no ar, como no poema de Cavafy: "E porque não vieram hoje, aqui, como é costume, os oradores/ para discursar, para dizer o que eles sabem dizer?/ Porque os bárbaros é hoje que aparecem,/ e aborrecem-se com eloquências e retóricas." Ainda não chegámos aí, é claro. Mas já alguns viram costas à família, e se mostram dispostos a assumir a felicidade da derrota, a felicidade de ter de recomeçar tudo de novo. Neste episódio recebemos João Oliveira Duarte para nos ajudar na busca desse efeito libertador, a concatenar juízos severos para nos furtarmos à desgraçada benevolência de um tempo que se agarra a esses rituais e ritmos colectivos na tentativa de adiar a promessa aniquiladora deste tempo.
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Se o nosso tempo não nos diz puto, todos os dias parecem ser domingo neste povoado à beira-mar e que eles se esqueceram de bombardear. Era mais ou menos isto que ouvíamos de uma dessas canções da nossa adolescência, e de algum modo batia certo, pois a sensação de desenraizamento deixa margem a uma estranha ânsia de aniquilação. É isso o que secretamente desejávamos quando se falava num ano novo: que se pudesse limpar com um pano molhado aquilo que ficou escrito no quadro, essas noções limitadas e desidratadas que nos obrigavam a decorar. Hoje faz-nos rir todo o tipo de imbecilidades com que eles nos martirizavam, e parece que até esse passado, com as suas estruturas inquestionáveis e misteriosamente harmónicas, se encontra destroçado e a ruir diante dos nossos olhos. E, no entanto, nem isso nos alivia da ansiedade histórica com que vivemos. É ridícula a ideia de se acolher numa data específica uma ideia de renovação, um futuro refeito de todas as decepções que carregamos, e sobretudo fazê-lo segundo um sistema de registro completamente arbitrário. Mesmo depois de ultrapassarmos a esperança, que foi durante muito tempo a nossa principal fraqueza, o problema com as datas em geral, as epoquizações e balanços que fazemos, é que não podemos programar os nossos apocalipses. A 1 de janeiro de 1916, Gramsci publicou uma coluna intitulada "Odeio o dia de Ano Novo" no jornal oficial do Partido Socialista Italiano, "Avanti!" Começava assim: "Todas as manhãs, quando desperto de novo sob o céu nublado, sinto que para mim é dia de Ano Novo. É por isso que detesto estes anos novos que caem como prazos vencidos, que transformam a vida e o espírito humano numa empresa comercial, com o seu saldo final bem arrumado, os seus montantes pendentes, o seu orçamento para a nova gestão. Fazem-nos perder a continuidade da vida e do espírito. Acabamos por pensar seriamente que entre um ano e o outro há uma pausa, que começa uma nova história; tomamos resoluções e arrependemo-nos da nossa irresolução, etc., etc." As datas que assinalamos, no entender de Gramsci, não passam de "penas de prisão espiritual" que nos foram impostas pelos "nossos tolos antepassados". Tornaram-se "invasivas e fossilizantes", forçando a vida a repetir séries de "ritmos colectivos obrigatórios". Era bom que a desculpa de um ano novo pudesse servir para fechar esse parêntesis da imbecilidade mascarada de civilização, da anemia mascarada de fulgor, e servisse para forçar um intervalo, um período de suspensão e exame crítico, ou até um exorcismo. Dos milhares de acontecimentos que sobrevêm todos os anos nunca poderia resultar uma harmonia perfeita, empurrando no mesmo sentido. Mas cada vez são mais as coisas que não foram digeridas, e que se guardam em nós de forma atropelada, gerando uma sensação de impotência ou indisponibilidade. Prisioneiros de um regime de aceleração maníaca, só o exorcismo revelaria uma reacção em força perante esta forma de possessão. Mas se esperamos dos intelectuais com banca e atestado, dos críticos e demais panegiristas profissionais que se ocupem destas tarefas, estamos bem lixados. Contudo, há uma indisposição geral que parece abrir margem para a organização do nosso pessimismo. Na Cidade cosmopolita, há focos de desordem, a inquietação respira-se no ar, como no poema de Cavafy: "E porque não vieram hoje, aqui, como é costume, os oradores/ para discursar, para dizer o que eles sabem dizer?/ Porque os bárbaros é hoje que aparecem,/ e aborrecem-se com eloquências e retóricas." Ainda não chegámos aí, é claro. Mas já alguns viram costas à família, e se mostram dispostos a assumir a felicidade da derrota, a felicidade de ter de recomeçar tudo de novo. Neste episódio recebemos João Oliveira Duarte para nos ajudar na busca desse efeito libertador, a concatenar juízos severos para nos furtarmos à desgraçada benevolência de um tempo que se agarra a esses rituais e ritmos colectivos na tentativa de adiar a promessa aniquiladora deste tempo.
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