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História do Cerco de Lisboa (e arredores). Uma conversa com António Brito Guterres

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De algum modo, hoje todos nos sentimos em perda, num luto sem um objecto certo, uma angústia difusa, convencidos de que somos incapazes de extrair um nexo desses dez mil farrapos de desinformação, condenados a alguma forma de neurose. Supomos que a realidade se tornou demasiado intensa, um enxame fervilhante cuja dispersão celular derrota a nossa capacidade de apreensão. A dolorosa imprecisão de todos os diagnósticos atravessa-nos uma e outra vez, desgastando-nos, e só raramente chegamos a compreender que, na verdade, isto não é próprio da realidade, mas de todas essas hipóteses virtuais que sacodem até corromper a consciência. Degrada-nos sentir como o futuro parece corresponder apenas às pretensões daqueles que estão alinhados com as multidões, esses que passam pelos dias cantando o êxtase de tudo aquilo que nos afasta do mundo. Como notou W.H. Auden, “a mais vulgar das torres de marfim é a do homem médio, esse estado de passividade face à experiência”. No sentido oposto, para nos guiar numa descida ao tão ameaçado enredo da realidade, neste episódio recorremos a António Brito Guterres, um sagaz intérprete que se baseia nos registos afectivos para cartografar esses territórios desfalcados, alguém que não se deixou dominar pela volúpia dos conceitos e da teoria, mantendo-se implicado e procurando superar esses instrumentos de análise obtusos que procuram reduzir todas as verdades a meia dúzia de fórmulas, mais ou menos rebuscadas, copiadas, memorizadas, passadas de mão em mão. Num esforço de vencer a perda de escala e de intimidade, este agente que traz os bolsos cheios de uma infinidade de chaves, não se limita a mapear, mas é ele mesmo um cerco à cidade num tempo em que esta parece estar a escapar. São cada vez mais as margens empurradas para uma forma ou outra de clandestinidade, e ele compreende melhor que ninguém que Lisboa ,como qualquer outra grande cidade, não é outra coisa senão um instrumento de medição do tempo. Não há melhor pessoa para pararmos na rua se quisermos saber com alguma precisão que horas realmente são. Num tempo em que dormimos e comemos imagens, rezamos a imagens, vestimos imagens, é bom podermos seguir alguém empenhado em desenhar um percurso incapturável no meio de nós, sem se perder nem se deixar arrastar por qualquer formigueiro. Um cicerone capaz de lançar a âncora quando todos zarpam atrás de miragens virtuais. Sem se reconhecer nas imagens dominantes ou nesses quilómetros de delírio que fazem das cidades um feixe do espectáculo que hoje está em toda a parte, Guterres dá-nos a ver o elemento de ruína que se esconde em todos esses projectos mírificos com que nos acenam, descortina os esquemas, expõe esta cidade como uma teia de aranha suspensa sobre um abismo.

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De algum modo, hoje todos nos sentimos em perda, num luto sem um objecto certo, uma angústia difusa, convencidos de que somos incapazes de extrair um nexo desses dez mil farrapos de desinformação, condenados a alguma forma de neurose. Supomos que a realidade se tornou demasiado intensa, um enxame fervilhante cuja dispersão celular derrota a nossa capacidade de apreensão. A dolorosa imprecisão de todos os diagnósticos atravessa-nos uma e outra vez, desgastando-nos, e só raramente chegamos a compreender que, na verdade, isto não é próprio da realidade, mas de todas essas hipóteses virtuais que sacodem até corromper a consciência. Degrada-nos sentir como o futuro parece corresponder apenas às pretensões daqueles que estão alinhados com as multidões, esses que passam pelos dias cantando o êxtase de tudo aquilo que nos afasta do mundo. Como notou W.H. Auden, “a mais vulgar das torres de marfim é a do homem médio, esse estado de passividade face à experiência”. No sentido oposto, para nos guiar numa descida ao tão ameaçado enredo da realidade, neste episódio recorremos a António Brito Guterres, um sagaz intérprete que se baseia nos registos afectivos para cartografar esses territórios desfalcados, alguém que não se deixou dominar pela volúpia dos conceitos e da teoria, mantendo-se implicado e procurando superar esses instrumentos de análise obtusos que procuram reduzir todas as verdades a meia dúzia de fórmulas, mais ou menos rebuscadas, copiadas, memorizadas, passadas de mão em mão. Num esforço de vencer a perda de escala e de intimidade, este agente que traz os bolsos cheios de uma infinidade de chaves, não se limita a mapear, mas é ele mesmo um cerco à cidade num tempo em que esta parece estar a escapar. São cada vez mais as margens empurradas para uma forma ou outra de clandestinidade, e ele compreende melhor que ninguém que Lisboa ,como qualquer outra grande cidade, não é outra coisa senão um instrumento de medição do tempo. Não há melhor pessoa para pararmos na rua se quisermos saber com alguma precisão que horas realmente são. Num tempo em que dormimos e comemos imagens, rezamos a imagens, vestimos imagens, é bom podermos seguir alguém empenhado em desenhar um percurso incapturável no meio de nós, sem se perder nem se deixar arrastar por qualquer formigueiro. Um cicerone capaz de lançar a âncora quando todos zarpam atrás de miragens virtuais. Sem se reconhecer nas imagens dominantes ou nesses quilómetros de delírio que fazem das cidades um feixe do espectáculo que hoje está em toda a parte, Guterres dá-nos a ver o elemento de ruína que se esconde em todos esses projectos mírificos com que nos acenam, descortina os esquemas, expõe esta cidade como uma teia de aranha suspensa sobre um abismo.

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