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Palco do Pompidou acolhe espectros e rituais de Catarina Miranda

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ΛƬSUMOЯI é um espectáculo que cruza dança, teatro, instalação sonora e instalação visual e que se afirma como “uma construção de arte contemporânea”. A obra de Catarina Miranda é apresentada, a 17 e 18 de Maio, no centro de arte contemporânea Pompidou, em Paris. A história parte de uma peça japonesa de teatro Noh, do século XV, em que o fantasma de uma criança-guerreira deambula pelo campo de batalha. A peça fala de espectros e rituais e mostra como a dança pode tornar visível o invisível.

ΛƬSUMOЯI é apresentada como “uma peça de dança para um quinteto e um palco luminoso”, mas os palcos de Catarina Miranda mobilizam movimento, teatro, instalação sonora, instalação visual, histórias visíveis e rituais invisíveis. A criadora resume que ΛƬSUMOЯI é “uma construção de arte contemporânea”, inspirada na peça japonesa de teatro Noh de título homónimo, em que o fantasma de uma criança-guerreira, morta em combate, deambula por um campo de batalha. A inspiração surge da formação em teatro Noh, no Kyoto Art Center, no Japão, depois de se ter licenciado em Coreografia pelo Instituto Internacional de Coreografia/Centro de Montpellier e em Artes Visuais pela Escola Superior de Belas-Artes do Porto.

ΛƬSUMOЯI é uma peça também definida como apotropaica, ou seja, uma dança que afasta o mal e que convoca o invisível. O resultado é um espectáculo em que se cruzam espectros e sombras, danças ancestrais e linguagens futuristas. O espaço cénico oscila entre a penumbra e reflexos fosforescentes, nos quais os corpos se dissolvem e se revelam, ao ritmo de uma composição sonora também ela "apotropaica".

ΛƬSUMOЯI estreou a 27 de Abril no festival Abril Dança Coimbra e foi apresentado a 30 de Abril no Festival Dias da Dança no Porto. A 17 e 18 de Maio, a peça vai estar no Centro Pompidou, em Paris, onde Catarina Miranda apresentou, em Março de 2022, o espectáculo “Cabraqimera” e a instalação vídeo “Poromechanics”.

Catarina Miranda: "Não é só dança, é arte contemporânea"

RFI: A Catarina Miranda está no Centro Pompidou pela segunda vez. O que significa para si, artista visual, mas também coreógrafa?

Catarina Miranda, Artista: “Eu penso que enquanto artista ou arquitecta de palco, é super entusiasmante apresentarmos estes espectáculos em diferentes palcos e com diferentes públicos. Para mim, vir ao Pompidou - e vir uma segunda vez a convite da Chloé [Siganos] - é de uma importância extrema porque durante todo o meu percurso eu nunca me senti artista visual ou coreógrafa ou música. Eu senti-me sempre uma artista de arte contemporânea, uma criadora de arte contemporânea. Mais do que artista, eu sou criadora e o Pompidou para mim também é a confirmação de que o trabalho que eu desenvolvo - e que desenvolvo sempre com equipas- é uma construção de arte contemporânea, não fica preso no formato da dança. Para mim, o Pompidou, que é um espaço a que eu vim muito nova, em que estudei as peças, que é dos museus com o maior espólio de arte contemporânea, obviamente, é um grande apreço estar cá porque sinto que estou no local correcto para apresentar este género de trabalho. Porque não é só dança, é arte contemporânea.”

O que significa ΛƬSUMOЯI?

"ΛƬSUMOЯI é o título homónimo de outro espectáculo de uma peça de teatro Noh, que eu estudei em 2018, num programa que se chama Traditional Theater Training, em Kyoto. Foi uma peça que, de certa forma, criou algum afecto comigo em algumas questões e eu pensei que seria interessante usar o mesmo título. Em termos de tipografia está manuseado, mas mesmo a palavra é o nome de um fantasma, de uma criança-guerreira que voltou ao campo de batalha para se vingar da sua própria morte. Depois foi uma personagem ficcionada e popularizada porque era uma criança aristocrata, era poeta, músico, artista. Então, era uma pessoa que não estava de todo preparada para enfrentar uma guerra e que acaba por ser morta e ser apanhada num conflito entre território e poder, que é uma temática que podemos rapidamente transpor para hoje, para toda a ontologia humana - uma criança que é apanhada no meio de marcas, no meio de um clã ou de outro."

Como é que toda essa história e essa fantasmagoria se reflectem em palco?

"O que me marcou e me afectou nesta peça foi não tanto a narrativa do espetáculo Noh, mas alguns conceitos que eu senti que gostaria de traduzir em palco e na temporalidade da arquitectura do palco. A primeira foi a sensação de: qual é o devir de ser espectro? O que é que implica ser espectro? Como se estabelece comunicação? Que corpo é este? Que sensação é esta de um espectro voltar para sempre ao sítio onde houve ruptura com o seu corpo e que cria uma segunda dependência que é a espectro-geografia, ou seja, a geografia está impregnada dos eventos que ali acontecem, que podíamos também facilmente dar exemplos concretos de hoje. E qual é essa relação do mundo dos vivos com o mundo do desconhecido que levanta questões mais filosóficas do que é que acontece quando há separação, quando há ruptura do corpo e o corpo fica desmembrado."

A dança e o corpo são presença. Como é que se torna presente o que está ausente?

"O que eu pensei é que seria muito interessante, por um lado, trabalhar níveis de visibilidade e níveis de presença, quase viajar entre níveis do que é visível e o que não é visível. Por isso, a arquitectura do palco é estabelecida enquanto lugares lumínicos e de sombra, quase como se estivéssemos sempre a atravessar vários níveis de comunicação e de visibilidade, mas também a necessidade de afirmar esse espectro na sua realidade, na sua condição nova. E na sua condição, se for o seu centro, reencontrará o seu corpo ou “remembrará” o seu corpo numa nova condição, até física. Por outro lado, não estará tão dependente desta obsessão de voltar para sempre a um ponto no tempo e no espaço."

A obra começa na penumbra, ao som de uma composição sonora metálica. Depois há sons mais techno e electrónicos que marcam o compasso dos bailarinos em transe, por vezes em modo robótico. Há qualquer coisa de ancestral que se cruza com o futurista. Como é que cruzou estas diferentes linguagens e porquê estas escolhas?

"Eu fui buscar várias referências de movimento ao teatro Noh em termos da essencialidade de gesto, do gesto essencial, da manipulação de objectos e também a elementos de outras danças mais religiosas, como o vudu e o candomblé, onde tanto a dança como a música têm o denominador comum do ritmo e do êxtase e da comunidade. Ao escolher uma equipa de co-criadores de dança contemporânea e de danças também urbanas e de teatro, fomos compondo gestualidades que são composições de grupo, quase como se fossem memórias de organização social, mas também depois afirmações individuais de personagens que são sempre a mesma personagem e que aí também vai beber um pouco aos fantasmas que cada bailarino tem na sua memória muscular. Ou seja, o nosso corpo carrega também em si fantasmas, não no sentido filosófico, mas realmente temos toda uma aprendizagem impregnada na nossa musculatura a que também fomos tirar partido e, por isso, muitas danças ou muitas técnicas contemporâneas foram também traduzidas nesta composição coreográfica.

Um ponto muito carinhoso para nós durante a peça toda, tanto em termos coreográficos como em termos da composição musical, é a questão apotropaica."

Quer explicar-nos o conceito?

"São todos os comportamentos, todas as acções e objectos que servem para afastar o mal, afastar a morte, afastar a doença, afastar o azar. Isso ocupa a banda sonora inteira, do início ao fim, e também as acções da peça, como o manuseamento de isqueiros para fazer faísca, palmas, vocalizes, chamamentos vocais, sussurros… Foi sempre tudo gravado pelo Lechuga Zaphiro e desenvolvido com os bailarinos para que houvesse realmente uma dança apotropaica, no sentido desta peça não só espantar, mas ser atraída por…"

Espantar os fantasmas, mas ao mesmo tempo chamar os fantasmas?

"Sim. Este palco é um quadrado suspenso, tem um chão e tem um tecto. A luz vem de cima e de baixo, quase como se estivéssemos a dobrar a luz do sol que pudesse iluminar de cima e de baixo ao mesmo tempo. O palco é todo desenhado por linhas de horizonte. Na cultura nipónica não existe nem céu nem inferno como na cultura cristã. Então, sendo ilhas, as almas podem repousar para além do mar, para além da linha do horizonte. Esta cenografia é toda cheia de linhas de horizonte."

A linha é um elemento que não está apenas no espaço desenhado em palco, no rectângulo do chão e no do tecto. Há também uma fita vermelha que une os intérpretes. Esta é uma fita lendária na cultura nipónica. Que fita é e porquê utilizá-la?

"É quase como se eu pudesse transportar a minha alma para outro corpo. Na cultura nipónica, seria uma fita do destino em que as almas estão juntas. Elas são irmãs gémeas e amam-se mutuamente, mas penso que aqui não é tão relativo a essa simbologia. É mais como eu consigo manter a minha linha de existência de várias formas, não só pelo gesto, mas também por me transportar para outro corpo ou por me projectar noutro corpo porque estamos sempre a falar de duplos e de dimensões dobradas.

E a questão da linha do horizonte vem porque eu estava a falar sobre comunicação. Se eu pensar que este espaço é um espaço intersticial de linhas de horizonte onde eu não sei tudo - nós não sabemos tudo em termos de quântica e de compreensão do mundo - mas se nós pudéssemos ter todas as dimensões ao mesmo tempo, num só espaço, seria quase uma caixa de comunicação, uma telefonia em que podemos ter tudo a comunicar com tudo. E essa linha vermelha também vem nessa leva de comunicação entre corpos."

A comunicação também acontece porque temos não apenas a dança, o movimento, mas também a instalação sonora, a instalação visual. Além de coreógrafa, é artista visual. Há uma vontade deliberada de acabar com as fronteiras em palco?

"Penso que não é uma opção individual, pessoal, mas há realmente uma grande liberdade, de um grande prazer de podermos imaginar, projectar ideias que não estão só contidas num só formato. A arquitectura do palco permite-nos potenciar todos os sentidos e é, por isso, que me interessa trabalhar níveis de percepção que não são só dependentes do movimento, mas de como é que é percebido e, muitas vezes, como é que eu posso criar tensão pela oposição do som e da luz e do movimento ou como os posso dinamizar todos ao mesmo tempo e criar uma sensação de alívio, por exemplo."

Falámos do som, do movimento, ainda não falámos propriamente da luz. Há cores fosforescentes, chamas douradas com as tais faíscas, há néons azuis... Como foram orientadas estas escolhas?

"A peça é uma peça nocturna que vive entre os brancos, os roxos, os lilases e os azuis frios. À medida que a peça se vai desenvolvendo, nós vamos entrando num vermelho sangue, a linha vermelha que sai da boca, uma linha que aparece mais tarde com ‘o diabo da Costa do Marfim, o diabo dos casacos’. Há também um grande sol que aparece na plataforma de cima, em contraposto com uma pessoa sozinha a confrontar-se com a sua própria morte. A peça foi gerida de um luar para algo que é mais ontológico, que é mais carnal. Daí esta viagem, dos tons frios para o vermelho."

Falou do ‘diabo dos casacos’. Há personagens atribuídas a cada intérprete?

"A meu ver, todos os intérpretes são a mesma personagem, são o fantasma cansado desta criança. E são mais do que isso, são o confronto com a própria perda, com a perda de si próprio, de uma desintegração do corpo e, ao mesmo tempo, confronto também com o início de um novo ciclo e a afirmação desse novo ciclo.

O monstro dos casacos, se assim lhe chamarmos, é uma personagem diferente. Ele é a adição de todas as superfícies, de todas as peles desta personagem, como se fosse o tempo. São várias peles, são várias superfícies. No teatro Noh existe uma ponte que leva da porta até ao palco, que é simbolicamente uma ponte que leva da realidade dos mortos à realidade dos vivos. Muitas vezes, a personagem principal sai com um figurino e volta a entrar com um figurino demoníaco. Ao longo de todas as peças Noh, há sempre uma revelação da personagem que começa, por exemplo, como uma rapariga inocente que está a contar uma história, mas que depois se revela um demónio que foi ruturado por alguma razão. E a mesma coisa também no espetáculo de marionetas japonesas, o Bunraku. Há sempre transformações, clivagens e revelações e isso interessa-me muito. Esta personagem vem nessa leva do que é mais do que humano, a temática é mais do que humana, passa para o abstracto, são superfícies que se movem de formas caóticas e não temos de explicar tudo no sentido narrativo."

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ΛƬSUMOЯI é um espectáculo que cruza dança, teatro, instalação sonora e instalação visual e que se afirma como “uma construção de arte contemporânea”. A obra de Catarina Miranda é apresentada, a 17 e 18 de Maio, no centro de arte contemporânea Pompidou, em Paris. A história parte de uma peça japonesa de teatro Noh, do século XV, em que o fantasma de uma criança-guerreira deambula pelo campo de batalha. A peça fala de espectros e rituais e mostra como a dança pode tornar visível o invisível.

ΛƬSUMOЯI é apresentada como “uma peça de dança para um quinteto e um palco luminoso”, mas os palcos de Catarina Miranda mobilizam movimento, teatro, instalação sonora, instalação visual, histórias visíveis e rituais invisíveis. A criadora resume que ΛƬSUMOЯI é “uma construção de arte contemporânea”, inspirada na peça japonesa de teatro Noh de título homónimo, em que o fantasma de uma criança-guerreira, morta em combate, deambula por um campo de batalha. A inspiração surge da formação em teatro Noh, no Kyoto Art Center, no Japão, depois de se ter licenciado em Coreografia pelo Instituto Internacional de Coreografia/Centro de Montpellier e em Artes Visuais pela Escola Superior de Belas-Artes do Porto.

ΛƬSUMOЯI é uma peça também definida como apotropaica, ou seja, uma dança que afasta o mal e que convoca o invisível. O resultado é um espectáculo em que se cruzam espectros e sombras, danças ancestrais e linguagens futuristas. O espaço cénico oscila entre a penumbra e reflexos fosforescentes, nos quais os corpos se dissolvem e se revelam, ao ritmo de uma composição sonora também ela "apotropaica".

ΛƬSUMOЯI estreou a 27 de Abril no festival Abril Dança Coimbra e foi apresentado a 30 de Abril no Festival Dias da Dança no Porto. A 17 e 18 de Maio, a peça vai estar no Centro Pompidou, em Paris, onde Catarina Miranda apresentou, em Março de 2022, o espectáculo “Cabraqimera” e a instalação vídeo “Poromechanics”.

Catarina Miranda: "Não é só dança, é arte contemporânea"

RFI: A Catarina Miranda está no Centro Pompidou pela segunda vez. O que significa para si, artista visual, mas também coreógrafa?

Catarina Miranda, Artista: “Eu penso que enquanto artista ou arquitecta de palco, é super entusiasmante apresentarmos estes espectáculos em diferentes palcos e com diferentes públicos. Para mim, vir ao Pompidou - e vir uma segunda vez a convite da Chloé [Siganos] - é de uma importância extrema porque durante todo o meu percurso eu nunca me senti artista visual ou coreógrafa ou música. Eu senti-me sempre uma artista de arte contemporânea, uma criadora de arte contemporânea. Mais do que artista, eu sou criadora e o Pompidou para mim também é a confirmação de que o trabalho que eu desenvolvo - e que desenvolvo sempre com equipas- é uma construção de arte contemporânea, não fica preso no formato da dança. Para mim, o Pompidou, que é um espaço a que eu vim muito nova, em que estudei as peças, que é dos museus com o maior espólio de arte contemporânea, obviamente, é um grande apreço estar cá porque sinto que estou no local correcto para apresentar este género de trabalho. Porque não é só dança, é arte contemporânea.”

O que significa ΛƬSUMOЯI?

"ΛƬSUMOЯI é o título homónimo de outro espectáculo de uma peça de teatro Noh, que eu estudei em 2018, num programa que se chama Traditional Theater Training, em Kyoto. Foi uma peça que, de certa forma, criou algum afecto comigo em algumas questões e eu pensei que seria interessante usar o mesmo título. Em termos de tipografia está manuseado, mas mesmo a palavra é o nome de um fantasma, de uma criança-guerreira que voltou ao campo de batalha para se vingar da sua própria morte. Depois foi uma personagem ficcionada e popularizada porque era uma criança aristocrata, era poeta, músico, artista. Então, era uma pessoa que não estava de todo preparada para enfrentar uma guerra e que acaba por ser morta e ser apanhada num conflito entre território e poder, que é uma temática que podemos rapidamente transpor para hoje, para toda a ontologia humana - uma criança que é apanhada no meio de marcas, no meio de um clã ou de outro."

Como é que toda essa história e essa fantasmagoria se reflectem em palco?

"O que me marcou e me afectou nesta peça foi não tanto a narrativa do espetáculo Noh, mas alguns conceitos que eu senti que gostaria de traduzir em palco e na temporalidade da arquitectura do palco. A primeira foi a sensação de: qual é o devir de ser espectro? O que é que implica ser espectro? Como se estabelece comunicação? Que corpo é este? Que sensação é esta de um espectro voltar para sempre ao sítio onde houve ruptura com o seu corpo e que cria uma segunda dependência que é a espectro-geografia, ou seja, a geografia está impregnada dos eventos que ali acontecem, que podíamos também facilmente dar exemplos concretos de hoje. E qual é essa relação do mundo dos vivos com o mundo do desconhecido que levanta questões mais filosóficas do que é que acontece quando há separação, quando há ruptura do corpo e o corpo fica desmembrado."

A dança e o corpo são presença. Como é que se torna presente o que está ausente?

"O que eu pensei é que seria muito interessante, por um lado, trabalhar níveis de visibilidade e níveis de presença, quase viajar entre níveis do que é visível e o que não é visível. Por isso, a arquitectura do palco é estabelecida enquanto lugares lumínicos e de sombra, quase como se estivéssemos sempre a atravessar vários níveis de comunicação e de visibilidade, mas também a necessidade de afirmar esse espectro na sua realidade, na sua condição nova. E na sua condição, se for o seu centro, reencontrará o seu corpo ou “remembrará” o seu corpo numa nova condição, até física. Por outro lado, não estará tão dependente desta obsessão de voltar para sempre a um ponto no tempo e no espaço."

A obra começa na penumbra, ao som de uma composição sonora metálica. Depois há sons mais techno e electrónicos que marcam o compasso dos bailarinos em transe, por vezes em modo robótico. Há qualquer coisa de ancestral que se cruza com o futurista. Como é que cruzou estas diferentes linguagens e porquê estas escolhas?

"Eu fui buscar várias referências de movimento ao teatro Noh em termos da essencialidade de gesto, do gesto essencial, da manipulação de objectos e também a elementos de outras danças mais religiosas, como o vudu e o candomblé, onde tanto a dança como a música têm o denominador comum do ritmo e do êxtase e da comunidade. Ao escolher uma equipa de co-criadores de dança contemporânea e de danças também urbanas e de teatro, fomos compondo gestualidades que são composições de grupo, quase como se fossem memórias de organização social, mas também depois afirmações individuais de personagens que são sempre a mesma personagem e que aí também vai beber um pouco aos fantasmas que cada bailarino tem na sua memória muscular. Ou seja, o nosso corpo carrega também em si fantasmas, não no sentido filosófico, mas realmente temos toda uma aprendizagem impregnada na nossa musculatura a que também fomos tirar partido e, por isso, muitas danças ou muitas técnicas contemporâneas foram também traduzidas nesta composição coreográfica.

Um ponto muito carinhoso para nós durante a peça toda, tanto em termos coreográficos como em termos da composição musical, é a questão apotropaica."

Quer explicar-nos o conceito?

"São todos os comportamentos, todas as acções e objectos que servem para afastar o mal, afastar a morte, afastar a doença, afastar o azar. Isso ocupa a banda sonora inteira, do início ao fim, e também as acções da peça, como o manuseamento de isqueiros para fazer faísca, palmas, vocalizes, chamamentos vocais, sussurros… Foi sempre tudo gravado pelo Lechuga Zaphiro e desenvolvido com os bailarinos para que houvesse realmente uma dança apotropaica, no sentido desta peça não só espantar, mas ser atraída por…"

Espantar os fantasmas, mas ao mesmo tempo chamar os fantasmas?

"Sim. Este palco é um quadrado suspenso, tem um chão e tem um tecto. A luz vem de cima e de baixo, quase como se estivéssemos a dobrar a luz do sol que pudesse iluminar de cima e de baixo ao mesmo tempo. O palco é todo desenhado por linhas de horizonte. Na cultura nipónica não existe nem céu nem inferno como na cultura cristã. Então, sendo ilhas, as almas podem repousar para além do mar, para além da linha do horizonte. Esta cenografia é toda cheia de linhas de horizonte."

A linha é um elemento que não está apenas no espaço desenhado em palco, no rectângulo do chão e no do tecto. Há também uma fita vermelha que une os intérpretes. Esta é uma fita lendária na cultura nipónica. Que fita é e porquê utilizá-la?

"É quase como se eu pudesse transportar a minha alma para outro corpo. Na cultura nipónica, seria uma fita do destino em que as almas estão juntas. Elas são irmãs gémeas e amam-se mutuamente, mas penso que aqui não é tão relativo a essa simbologia. É mais como eu consigo manter a minha linha de existência de várias formas, não só pelo gesto, mas também por me transportar para outro corpo ou por me projectar noutro corpo porque estamos sempre a falar de duplos e de dimensões dobradas.

E a questão da linha do horizonte vem porque eu estava a falar sobre comunicação. Se eu pensar que este espaço é um espaço intersticial de linhas de horizonte onde eu não sei tudo - nós não sabemos tudo em termos de quântica e de compreensão do mundo - mas se nós pudéssemos ter todas as dimensões ao mesmo tempo, num só espaço, seria quase uma caixa de comunicação, uma telefonia em que podemos ter tudo a comunicar com tudo. E essa linha vermelha também vem nessa leva de comunicação entre corpos."

A comunicação também acontece porque temos não apenas a dança, o movimento, mas também a instalação sonora, a instalação visual. Além de coreógrafa, é artista visual. Há uma vontade deliberada de acabar com as fronteiras em palco?

"Penso que não é uma opção individual, pessoal, mas há realmente uma grande liberdade, de um grande prazer de podermos imaginar, projectar ideias que não estão só contidas num só formato. A arquitectura do palco permite-nos potenciar todos os sentidos e é, por isso, que me interessa trabalhar níveis de percepção que não são só dependentes do movimento, mas de como é que é percebido e, muitas vezes, como é que eu posso criar tensão pela oposição do som e da luz e do movimento ou como os posso dinamizar todos ao mesmo tempo e criar uma sensação de alívio, por exemplo."

Falámos do som, do movimento, ainda não falámos propriamente da luz. Há cores fosforescentes, chamas douradas com as tais faíscas, há néons azuis... Como foram orientadas estas escolhas?

"A peça é uma peça nocturna que vive entre os brancos, os roxos, os lilases e os azuis frios. À medida que a peça se vai desenvolvendo, nós vamos entrando num vermelho sangue, a linha vermelha que sai da boca, uma linha que aparece mais tarde com ‘o diabo da Costa do Marfim, o diabo dos casacos’. Há também um grande sol que aparece na plataforma de cima, em contraposto com uma pessoa sozinha a confrontar-se com a sua própria morte. A peça foi gerida de um luar para algo que é mais ontológico, que é mais carnal. Daí esta viagem, dos tons frios para o vermelho."

Falou do ‘diabo dos casacos’. Há personagens atribuídas a cada intérprete?

"A meu ver, todos os intérpretes são a mesma personagem, são o fantasma cansado desta criança. E são mais do que isso, são o confronto com a própria perda, com a perda de si próprio, de uma desintegração do corpo e, ao mesmo tempo, confronto também com o início de um novo ciclo e a afirmação desse novo ciclo.

O monstro dos casacos, se assim lhe chamarmos, é uma personagem diferente. Ele é a adição de todas as superfícies, de todas as peles desta personagem, como se fosse o tempo. São várias peles, são várias superfícies. No teatro Noh existe uma ponte que leva da porta até ao palco, que é simbolicamente uma ponte que leva da realidade dos mortos à realidade dos vivos. Muitas vezes, a personagem principal sai com um figurino e volta a entrar com um figurino demoníaco. Ao longo de todas as peças Noh, há sempre uma revelação da personagem que começa, por exemplo, como uma rapariga inocente que está a contar uma história, mas que depois se revela um demónio que foi ruturado por alguma razão. E a mesma coisa também no espetáculo de marionetas japonesas, o Bunraku. Há sempre transformações, clivagens e revelações e isso interessa-me muito. Esta personagem vem nessa leva do que é mais do que humano, a temática é mais do que humana, passa para o abstracto, são superfícies que se movem de formas caóticas e não temos de explicar tudo no sentido narrativo."

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