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Música electrónica, recreios agrícolas e lições de magia. Uma conversa com Mariana Pinho
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Por uma vez, e contrariando o Bowie, podíamos deixar de ser heróis, ou, pelo menos, de representar a realidade de forma anã para nos fazer sobressair. Contudo, às vezes parece ser esta que se encolhe ou retira, que se esquiva das nossas representações. Neste consumo constante de lendas pessoais, de fanfarronadas e galhardias histriónicas, estamos a perder todo o tesão por esse ideal de vivermos embrulhados uns com outros. "O coração é uma arte difícil", assinalava algures José Amaro Dionísio, adiantando que, tirando essa proximidade conquistada a palmo, "tudo o resto é a crédito". Em tempos, no alfabeto que compôs para a nossa dor comum, ele vincava como "solidão é uma palavra obscena"... "É mesmo a única palavra irremediavelmente obscena de que já ouvi falar. Cheira a atropelos, pudor, colhões, e tenho medo." Este medo vive por estes dias embriagado, numa exuberância ridícula, fazendo um espectáculo de si mesmo. É uma forma de disenteria, e se antes as pessoas estavam sempre a morrer disso, hoje cagam-se até morrer exibindo-o como podem, alguns maçando meio mundo, outros em publicações nas redes sociais. Mirando à volta, qualquer uma dessas manifestações exprimem um estado de dependência, e seria realmente muito extraordinário se dos milhares de emissões que concorrem entre si na esfera virtual resultasse uma harmonia perfeita. Seria espantoso se de tudo isso resultasse uma satisfação qualquer, em vez de ser um modo de cada um se individuar enquanto protagonista de uma telenovela pindérica, quando não se preparou para mais do que fazer trabalhos ocasionais como figurante. Mas continuamos nisto, e com todos estes heroísmos patéticos estamos a dar cabo numa só época do prestígio que a raça foi constituindo para si no cultivo dessas fabulosas injúrias contra nós mesmos. Valeria Luiselli, numa das páginas do seu "Deserto Sonoro", confessa que não tem um diário, que os seus diários são as coisas que sublinha nos livros de outros. "Jamais emprestaria um livro a quem quer que fosse depois de o ler. Sublinho demasiado, às vezes páginas inteiras, às vezes duplamente." Estamos necessitados de gente que viva as suas vidas como um imenso plágio, lendo em voz alta, até ganhar uma tal naturalidade que quem quer que viesse para um debate sem um bom argumento ensaiado ao espelho ou em frente ao gato, aos catos, horrizando a vizinhança, fosse apupado até desaparecer de cena. Por uma vez que deixássemos de ter de aturar esses improvisos tacanhos e simplórios, toda essa gaguez e pigarreio, todo esse visco dos lugares-comuns que andam por aí sempre requentados. Este ajustamento permanente a modas passageiras e aos significantes das redes sociais lembra o aviso de Hannah Arendt: "Os clichés, as frases feitas, a adesão a códigos estereotipados e convencionais de expressão e comportamento têm a função socialmente reconhecida de nos proteger da realidade, ou seja, da exigência de atenção que todos os acontecimentos e factos, pela simples razão de existirem, apresentam ao nosso pensamento." Estamos a apagar o mundo com esses solilóquios desgraçados, com essa exibição constante nesta feira de aberrações fastidiantes. Melhor seria dar expressão ao assombro expansivo de um leitor, montando um guião a partir dos materiais mais diversos, tudo mastigado, esse resplendor efémero das coisas que provocaram em nós uma rara emoção, cada frase revista mil vezes, boa parte delas memorizadas, transcritas para todo o lado. Num tempo em que o decoro deu lugar aos derrames e eflúvios mais desgastantes, a espontaneidade deve despontar de um trabalho minucioso, colossal. O elemento essencial que eleva um palco é a exigência de quem quer que esteja a assistir. Não existe teatro sem esse elemento cruel, essa possibilidade de se ser arrasado ao representar uma cena. Devíamos realmente fazer do mundo um palco, em vez desta odiosa sala de espera, este pardieiro onde permanecemos sentados enquanto o nosso rabo incha a caminho da meia-idade, e depois dessa outra onde já nem falamos de outra coisa. E todas estas zonas e regimes da cultura assentam no princípio da inércia. Luiselli diz-nos que também frequentou a universidade, ainda que por pouco tempo. Perdeu a paciência para os professores com a sua "linguagem alimentada a anfetaminas, críptica, rizomática e absolutamente cheia de si". Vivemos enredados entre a selvajaria e estas zonas onde a sofisticação intelectual significa sempre alguma forma de compromisso com vista a neutralizar toda a acção transformadora. Talvez se soubéssemos de cor as palavras que realmente gostaríamos de dizer, e a vida mais não fosse do que buscar a ocasião propícia a cada cena, talvez então não fosse tudo tão inócuo. Neste episódio, Mariana Pinho, entre as aulas de História numa escola no Monte da Caparica, as raves de música electrónica no meio de bosques com bruxaria de ordem química à mistura, e teses sobre a vida das plantas, as florestas e o diabo a sete, veio falar connosco sobre este tempo congelado em que vivemos, e os laços que ainda são possíveis em termos afectivos e solidários, modos de organização colectiva experimental que possam permitir-nos emergir dos destroços em que vivemos imersos.
80 episódios
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Por uma vez, e contrariando o Bowie, podíamos deixar de ser heróis, ou, pelo menos, de representar a realidade de forma anã para nos fazer sobressair. Contudo, às vezes parece ser esta que se encolhe ou retira, que se esquiva das nossas representações. Neste consumo constante de lendas pessoais, de fanfarronadas e galhardias histriónicas, estamos a perder todo o tesão por esse ideal de vivermos embrulhados uns com outros. "O coração é uma arte difícil", assinalava algures José Amaro Dionísio, adiantando que, tirando essa proximidade conquistada a palmo, "tudo o resto é a crédito". Em tempos, no alfabeto que compôs para a nossa dor comum, ele vincava como "solidão é uma palavra obscena"... "É mesmo a única palavra irremediavelmente obscena de que já ouvi falar. Cheira a atropelos, pudor, colhões, e tenho medo." Este medo vive por estes dias embriagado, numa exuberância ridícula, fazendo um espectáculo de si mesmo. É uma forma de disenteria, e se antes as pessoas estavam sempre a morrer disso, hoje cagam-se até morrer exibindo-o como podem, alguns maçando meio mundo, outros em publicações nas redes sociais. Mirando à volta, qualquer uma dessas manifestações exprimem um estado de dependência, e seria realmente muito extraordinário se dos milhares de emissões que concorrem entre si na esfera virtual resultasse uma harmonia perfeita. Seria espantoso se de tudo isso resultasse uma satisfação qualquer, em vez de ser um modo de cada um se individuar enquanto protagonista de uma telenovela pindérica, quando não se preparou para mais do que fazer trabalhos ocasionais como figurante. Mas continuamos nisto, e com todos estes heroísmos patéticos estamos a dar cabo numa só época do prestígio que a raça foi constituindo para si no cultivo dessas fabulosas injúrias contra nós mesmos. Valeria Luiselli, numa das páginas do seu "Deserto Sonoro", confessa que não tem um diário, que os seus diários são as coisas que sublinha nos livros de outros. "Jamais emprestaria um livro a quem quer que fosse depois de o ler. Sublinho demasiado, às vezes páginas inteiras, às vezes duplamente." Estamos necessitados de gente que viva as suas vidas como um imenso plágio, lendo em voz alta, até ganhar uma tal naturalidade que quem quer que viesse para um debate sem um bom argumento ensaiado ao espelho ou em frente ao gato, aos catos, horrizando a vizinhança, fosse apupado até desaparecer de cena. Por uma vez que deixássemos de ter de aturar esses improvisos tacanhos e simplórios, toda essa gaguez e pigarreio, todo esse visco dos lugares-comuns que andam por aí sempre requentados. Este ajustamento permanente a modas passageiras e aos significantes das redes sociais lembra o aviso de Hannah Arendt: "Os clichés, as frases feitas, a adesão a códigos estereotipados e convencionais de expressão e comportamento têm a função socialmente reconhecida de nos proteger da realidade, ou seja, da exigência de atenção que todos os acontecimentos e factos, pela simples razão de existirem, apresentam ao nosso pensamento." Estamos a apagar o mundo com esses solilóquios desgraçados, com essa exibição constante nesta feira de aberrações fastidiantes. Melhor seria dar expressão ao assombro expansivo de um leitor, montando um guião a partir dos materiais mais diversos, tudo mastigado, esse resplendor efémero das coisas que provocaram em nós uma rara emoção, cada frase revista mil vezes, boa parte delas memorizadas, transcritas para todo o lado. Num tempo em que o decoro deu lugar aos derrames e eflúvios mais desgastantes, a espontaneidade deve despontar de um trabalho minucioso, colossal. O elemento essencial que eleva um palco é a exigência de quem quer que esteja a assistir. Não existe teatro sem esse elemento cruel, essa possibilidade de se ser arrasado ao representar uma cena. Devíamos realmente fazer do mundo um palco, em vez desta odiosa sala de espera, este pardieiro onde permanecemos sentados enquanto o nosso rabo incha a caminho da meia-idade, e depois dessa outra onde já nem falamos de outra coisa. E todas estas zonas e regimes da cultura assentam no princípio da inércia. Luiselli diz-nos que também frequentou a universidade, ainda que por pouco tempo. Perdeu a paciência para os professores com a sua "linguagem alimentada a anfetaminas, críptica, rizomática e absolutamente cheia de si". Vivemos enredados entre a selvajaria e estas zonas onde a sofisticação intelectual significa sempre alguma forma de compromisso com vista a neutralizar toda a acção transformadora. Talvez se soubéssemos de cor as palavras que realmente gostaríamos de dizer, e a vida mais não fosse do que buscar a ocasião propícia a cada cena, talvez então não fosse tudo tão inócuo. Neste episódio, Mariana Pinho, entre as aulas de História numa escola no Monte da Caparica, as raves de música electrónica no meio de bosques com bruxaria de ordem química à mistura, e teses sobre a vida das plantas, as florestas e o diabo a sete, veio falar connosco sobre este tempo congelado em que vivemos, e os laços que ainda são possíveis em termos afectivos e solidários, modos de organização colectiva experimental que possam permitir-nos emergir dos destroços em que vivemos imersos.
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