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LGPD, LAI e o blecaute de transparência do Governo Bolsonaro

 
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Conta o mito que cerca de 750 antes de Cristo dois gêmeos foram abandonados pela mãe nas margens do rio Tibre, na Itália, após o pai mandar matá-los. Segue a lenda que aquele rio tinha um deus específico chamado Tiberino que salvou os gêmeos da morte e permitiu que, mais tarde, uma loba os encontrasse no meio do mato e os alimentassem. O leite da loba garantiu que Rômulo e Remo sobrevivessem até que um pastor os adotassem.

A história da loba alimentando os gêmeos é o mito no qual se baseia Roma. Se você passeia pelas ruas da cidade, não é difícil encontrar estátuas que representam o episódio da mitologia romana. Há incontáveis lobas espalhadas por Roma, não apenas em estátuas e pinturas. O escudo do maior clube de futebol da cidade tem a tal loba com Rômulo e Remo prestes a abocanhar seus úberes. A mitologia conta que ambos cresceram e se tornaram líderes de uma cidade que atraía cada vez mais gente. A história não acaba tão bem, já que o Rômulo mata o Remo, mas isso a gente deixa para depois.

A lenda da loba marca o começo de uma das civilizações mais influentes que a humanidade já produziu. Dos gêmeos abandonados à margem do Tibre perto de 750 antes de Cristo à deposição do último imperador do Império Romano do Ocidente na Itália, Romulus Augustulus, em 476 depois de Cristo, Roma saiu de um povoado nascido a leite de loba para o maior império do planeta, comandando regiões em grande parte da Europa, no norte da África e no Oriente, onde hoje está Istambul. O impacto de Roma não para no lado bélico: até hoje, referências culturais, termos científicos e a base do nosso ordenamento jurídico, todos criados em Roma, nos acompanham.

A ascensão e queda de Roma, completa ou em trechos, é uma história interessantíssima que já foi amplamente explorada em todos os tipos de mídia. Se você quiser um livro, existe o seminal The history of the decline and fall of the Roman Empire, um catatau de seis volumes escrito pelo historiador inglês Edward Gibbon em 1776 e até hoje considerada a melhor obra sobre o tema. Se você gosta de TV misturando história e putaria, a HBO fez uma série excelente chamada Roma. Para falar de filmes teríamos que ficar uma vida aqui, mas Gladiador e A queda do império romano são ótimos começos. E nos games há um jogo de estratégia excelente chamado Rome: Total war que está sempre em promoção na Steam1.

Do reino à república e ao império, Roma teve várias fases. Em todas elas, seu coração era um espaço de dois hectares bem no centro da cidade, bem em frente ao Coliseu: era o Fórum Romano. O fórum era o centro da vida de Roma. Era ali que políticos e candidatos faziam discursos, criminosos eram julgados, o exército romano desfilava os tesouros, escravos e animais trazidos de batalhas distantes, mercadores faziam negócios, sacrifícios para deuses eram feitos e parte da vida social e cívica se desenvolvia. Era no Fórum Romano que ficava o Senado Romano, um modelo copiado pelo resto da humanidade até hoje. Foi em um espaço em frente ao Senado no Fórum que Júlio César, cambaleando após ser emboscado e esfaqueado por outros senadores, caiu no chão sangrando e, antes de morrer, murmurou aquela frase clássica: “até tu, Brutus?” Se Roma era um corpo, o Fórum Romano era seu coração.

Se você pretende visitar Roma — e eu super aconselho a ir —, o Fórum é uma visita obrigatória. Mas não espere encontrar tudo em excelente estado de preservação. O que vai chamar sua atenção é que o Fórum hoje é um apanhado de ruínas que ainda são escavadas e trabalhadas para revelar como os romanos viviam e se organizavam. “Claro, Guilherme, é antigo para caramba, vai ter só ruína mesmo.” Uma parte do argumento faz sentido — o tempo é menos duro com mármores e pedras do que com o nosso corpo, mas ele ainda é implacável. Há um desgaste natural de algo construído há tanto tempo.

Desenho em preto e branco de uma Roma abandonada, com prédios decadentes e algumas pessoas e cavalos no canto inferior direito.
Desenho: Davis Museum.

Tem outro fator em que quero me focar. Após a queda do Império Romano do Ocidente, o Fórum virou um grande desmanche — pedras que ornavam templos e prédios antigos eram arrancados pelo valor e construções eram destruídas para reaproveitar seus mármores em novos prédios. Perto de 660 d.C., o então imperador Constante II mandou arrancar os telhados dos prédios, o que acelerou ainda mais a degradação. Em plena era Medieval, perto de 800 d.C., o Fórum tinha sido abandonado como centro da vida romana e, além do desmanche, servia também como pasto e uma espécie de lixão. Desenho (acima) do arqueólogo italiano Giovanni Piranesi mostra as carroças e os animais andando perto de ruínas e prédios clássicos ainda de pé. Durante séculos, a mistura entre deterioração natural e ação humana de descarte foi soterrando o Fórum. O lugar onde Júlio César morreu estava debaixo de toneladas de terra e lixo.

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Durante séculos, as ruínas eram encaradas como a marca de um passado que não merecia consideração. O que passou, passou e, por isso, não vale nem a pena preservar ou questionar. Esqueça, siga adiante e aproveite o que der. Por mais que existam relatos na Mesopotâmia cinco séculos antes de Cristo e na China no século X, essa coisa de descobrir, preservar e estudar prédios, cidades e artefatos antigos, a base do que a gente conhece hoje como arqueologia, só começou a engrenar depois do século XV, quando a Europa passava pelo Renascimento. O sujeito considerado pai da arqueologia moderna foi um inglês chamado John Aubrey que, entre tantos trabalhos relevantes, foi um dos responsáveis por escavar Stonehenge. Os buracos de giz que cercam Stonehenge não se chamam buracos de Aubrey à toa.

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Foi no século XV, dentro desta onda do Renascimento, que uma das Tartarugas Ninja ajudou a aumentar o interesse da sociedade italiana em entender o que tinha acontecido com seus antepassados. O arquiteto Filippo Brunelleschi e o escultor Donatello Bardi (séculos mais tarde homenageado com a tartaruga que usa um bastão de madeira) se mudaram para Roma para estudar como incorporar em suas próprias obras elementos presentes nas ruínas.

Um dos lugares preferidos de estudo da dupla era o Fórum Romano. Ao usarem aqueles elementos em suas obras, Brunelleschi e Donatello engrossaram a proposta do Renascimento de deixar de tratar as ruínas como algo irrelevante, mas sim algo a ser preservado, estudado e recuperado.

Curiosidade: Donatello foi o artista renascentista homenageado pelas Tartarugas Ninja que nasceu antes. Décadas depois da sua morte, as outras três tartarugas tiveram interações específicas no alto do Renascimento. Michelangelo Buonarroti foi contratado pela prefeitura de Florença para criar uma estátua no topo da catedral da cidade, mas o trabalho ficou tão bom que um conselho de notáveis votou para trazer a estátua para o chão. Entre os que votaram contra estava Leonardo da Vinci. Mais novo de todos, Raphael Sanzio virou queridinho do Vaticano, o que despertou a inveja mortal de Michelangelo — mortal para o Raphael, que morreu com 37 anos, supostamente de sífilis de tanto que ele transava2. Se a rivalidade entre Michelangelo e Leonardo era aquela de dois sujeitos da mesma geração que se odeiam e se tornam melhores, a entre Raphael e Michelangelo era do velho neurótico que vê um sujeito mais novo e tão talentoso quanto cair na graças do principal cliente e se questiona furiosamente se seu tempo já passou.

A última conexão entre as quatro tartarugas é entre Donatello e Michelangelo: a cidade de Florença encomendou um pedaço de mármore da cidade de Carrara3 nas medidas tradicionais que o maior escultor da época, Donatello, gostava — mais fina e alta. Um dos seus alunos foi escolhido para criar daquele pedaço de pedra um David. Agostino di Duccio começou com as pernas, mas parou. Cerca de 30 anos depois, Michelangelo pegaria o pedaço de mármore já começado para esculpir uma das suas obras-primas, o David. O dia em que estivermos tomando uma cerveja você me pergunta por que eu gosto tanto do David. Todo mundo fala do livro do Walter Isaacson sobre o Leonardo da Vinci (muito elogiado, mas eu nunca li), mas tem outra dica excelente sobre os artistas: a biografia do Michelangelo escrita pelo Martin Gayford. Foi editada no Brasil pela Cosac e está fora de catálogo. Voltando.

Quando você visita o Fórum hoje, percebe algumas coisas: a primeira é que o fórum está abaixo da altura da rua. A segunda é que nem todos os prédios têm entradas na mesma altura. As construções originais do fórum são mais baixas, enquanto igrejas construídas no tempo do lixão são mais altas — tanta terra e detrito durante séculos elevou o chão. Então o Fórum Romano é, hoje, uma mistura entre construções originais e outras que foram feitas nas suas diferentes fases.

Vamos entender uma coisa: as toneladas de terra e detritos que se acumularam e soterraram a história de Roma estavam lá por desinteresse da sociedade, aquela jogada de ombros coletiva que todos dão quando algo que estava bombando entra numa espiral da morte. É o desinteresse que deixa a terra acumular e esconde o passado. Guarde essa imagem na sua cabeça. Fora a galera comum, a Roma antiga foi composta por gênios e malucos. No primeiro grupo estão nomes como Cícero, Sêneca e Hipócrates, além dos inventores do cimento, dos algarismos romanos e da sanitização. No segundo, estão Calígula, que nomeou o cavalo Incitatus como cônsul, e, claro, Nero, o sujeito que literalmente botou fogo na coisa toda.

Agora, a gente vai para um outro momento do tempo-espaço em que, ao contrário de Roma, só os malucos estão no poder: o Brasil entre 2019 e 2022. Desde seus primeiros meses, o governo de Jair Bolsonaro se esforçou para estrangular a transparência que se espera de qualquer governo republicano e democrata no século XXI. A fórmula é muito simples: sem dados, não existem evidências. Sem investigações, não existem crimes. Sem responsabilização, há a certeza de que o comportamento criminoso continuará.

O 12º e penúltimo episódio da quarta temporada do Tecnocracia vai falar sobre transparência, opacidade e como, em vez do descaso e desinteresse da sociedade, é possível você mesmo adotar estratégias para soterrar informações importantes para a sociedade. Mais que isso: você está acostumado(a) a ouvir apenas minha voz por aqui. Hoje é um dos raros episódios em que eu terei companhia para me ajudar a explicar essa questão.

A cada quinze dias (às vezes um pouco mais, às vezes uns meses mais), o Tecnocracia mistura detalhes curiosos sobre Tartarugas Ninjas a teses de doutorado e recortes de jornal para tentar mostrar que a tecnologia mais avançada do mundo não resolve a intenção de esconder informações. Eu sou o Guilherme Felitti e o Tecnocracia está na campanha de financiamento coletivo do Manual do Usuário. A partir do plano II (R$ 16 por mês), você entra no grupo reservado onde costuma ter o Tecnocracia Balcão e ainda ganha adesivos. A única parte mais opaca deste podcast envolve a frase que eu falei há pouco de que tem episódio a cada quinze dias, mas eu mesmo já fiz piada sobre isso, então você já foi avisado, não tem nada de enganação.

Para ajudar a explicar o conceito, eu convidei a Fernanda Campagnucci, diretora-geral da Open Knowledge Brasil, uma organização da sociedade civil que estuda e monitora transparência e governos abertos. Eu já falei isso para ela numa banca de TCC que dividimos há alguns meses, mas agora repito para vocês ouvirem também: a Fernanda é uma das pessoas que mais entende de dados abertos no Brasil. No meio do episódio você vai ouvir a Fernanda comentando alguns pontos e abrilhantando o Tecnocracia.

Fernanda: A gente pode dizer que transparência é uma senhora de pelo menos 300 anos. Apesar de hoje estar muito associada à questão de dados, tecnologia, essa ideia ganhou fama lá no Iluminismo, no século XVII, e é importante regatarmos isso porque hoje, por incrível que pareça, há uns movimentos obscurantistas mesmo, querendo resgatar valores da Idade Média, com negacionismo… enfim.

Essa ideia de que o Estado, os governos precisam prestar contas dos seus atos, nasceu junto com a própria definição de Estados. O desenho do Estado liberal, e a própria noção de indivíduos, de direitos individuais.

O que o Iluminismo estava respondendo? A que ele estava se contrapondo naquela época? A forma predominante de poder da Antiguidade, que eram os segredos de Estados. Se a transparência tem 300 anos, essa ideia de segredos de Estados é muito mais antiga, por isso que é tão difícil da gente se livrar dela.

Essa frase de que “informação é poder” já aparece em textos muito antigos. O Tácito, um historiador latino, o primeiro a falar de que essa ideia de que o segredo de Estado é condição do exercício de poder, e no primeiro século, então a gente pode ver essa relação histórica: onde tem regime autoritário, tem menos circulação de informação. A gente vê em ditaduras, que tem censuras… E o Iluminismo se contrapôs a isso na época, inclusive com essa ideia de que o Estados só tem legitimidade se publica informação, algo muito semelhante ao que a gente tem hoje. O Diário Oficial é isso, é a legitimidade do ato porque ele é publicado.

Eu vou falar rapidinho de três exemplos que acho interessantes e que reverberam até hoje:

  1. A Suécia tem a primeira lei de acesso à informação em 1766.
  2. Na França, na mesma época, alguns anos antes da Revolução Francesa, a primeira divulgação de um orçamento público do mundo. E ali, porque a burguesia estava discutindo com o Estado os gastos de guerra, os impostos subindo, todo aquele caldo da Revolução Francesa estava demandando também mais transparência porque era uma questão de disputa de poder.
  3. E o parlamento britânico, nessa mesma época, também tudo isso, com inspiração do Iluminismo, começa a divulgar os discursos na íntegra dos lordes e dos parlamentares na Câmara dos Comuns.

Vou dar um super salto na história. Depois, temos algumas ondas de leis de acesso à informação. A mais recente delas, foi nos anos 2000, que tínhamos alguns países no mundo com leis de aceso à informação, na Europa e nos Estados Unidos; aqui na América Latina a Colômbia foi uma das primeiras, mas nos anos 2000 que isso se difundiu no mundo, impulsionado pela internet.

Aqui no Brasil foi tardio. Tivemos em 2011 a nossa Lei de Acesso à Informação. Se comparada a essa história toda que falei, realmente ela é recente, mas ela já veio pelo menos com um desenho mais avançado, justamente por ser tardia, que tem lá a ideia de formato aberto de dados, de acesso automatizado, que nos ajuda na demanda por dados abertos e por informações de mais qualidade.

Transparência e democracia andam de mãos dadas. Quem nos ensinou isso foram aqueles que cunharam os dois conceitos e também uma escola de arte na qual os romanos se inspiraram imensamente: os gregos.

A partir do século V a.C., a Grécia entendeu que um governo aberto facilita a participação popular e incentiva a fiscalização dos eleitos para cargos representativos. Atenas montou uma instituição chamada de “euthyna” que exigia dos representantes eleitos uma conduta íntegra e prestação de contas anual aos cidadãos. O verbete do Oxford Classical Dictionary para “euthyna” explica melhor:

Euthyna (do grego “endireitar”) era a fiscalização de contas que todo funcionário público tinha que submeter ao término de seu cargo. Em Atenas, a fiscalização dividia-se em duas partes, o “logos” (“conta”), referente ao manejo do dinheiro público e tratado por um conselho de dez “logistai” (“contadores”), e o “euthynai” propriamente dito, uma oportunidade de levantar qualquer outra questão ou objeção à sua conduta no cargo, tratada por um conselho de dez “euthynoi” (“endireitadores”) nomeados pelo conselho (“boulē”). Esses funcionários poderiam rejeitar as acusações ou repassá-las aos tribunais.

Aqui a palavra chave é “responsabilidade”, tradução de um termo que cabe mas não encaixa direitinho como seu original anglófono que a Luciana Gimenez chamaria de “accountability”. Para os gregos, responsabilidade e democracia andavam juntas, mas a primeira era tão importante que precedia a segunda. Abre aspas para o artigo “The straight and the crooked: Legal accountability in ancient Greece”, publicado pela jurista e pesquisadora Deirdre Dionysia von Dornum no Columbia Law Review em 1997:

Os antigos gregos eram obcecados em manter seus funcionários legalmente responsáveis por suas ações no cargo. Pesquisadores estudaram os complexos mecanismos legais desenvolvidos por Atenas no século V a.C. para controlar as ações oficiais. Presume-se uma conexão entre a preocupação com a responsabilização e um sistema democrático de governo, porque a maioria das evidências históricas existentes é daquela época. Historiadores tendem a atrelar a responsabilização à democracia, mas este artigo mostra que os sistemas e a ideologia de responsabilidade existiam na Grécia muito antes do surgimento da democracia: já no século oito antes de Cristo, a responsabilidade é perceptível como um valor político e cultural.

Ainda que não tenham nascido juntas, democracia e responsabilidade/responsabilização andam de mãos dadas. Nas palavras do pesquisador Andreas Schedler citadas na dissertação de mestrado do também pesquisador Fabiano Angélico, “accountability” é a “obrigação de abrir-se ao público, obrigação de explicar e justificar suas ações e subordinação à possibilidade de sanções”. Essa noção de ter um “governo aberto” que libera dados tanto para incentivar a participação popular como para fiscalizar seus representantes começou a ganhar força no Iluminismo e se transformou no século XX em leis que obrigam as diferentes esferas do governo a abrirem seus dados a todos os cidadãos.

Nos EUA, a Freedom of Information Act (abreviada como FOIA) foi aprovada em 1966, não sem passar por choro e ranger de dentes. O Brasil aprovou em 2011 uma lei semelhante chamada Lei de Acesso à Informação (LAI). Só demorou 23 anos para regulamentar algo previsto na Constituição de 1988 — o famoso “antes tarde do que nunca”. O debate sobre transparência no Brasil nasce na década de 1970, em plena Ditadura Militar e, durante a redemocratização, “ganha importância a crítica ao sigilo e controle estatal dos fluxos de informação e a promoção de ideias relacionadas ao direito de consulta aos arquivos públicos”, segundo artigo do sociólogo João Francisco Resende no Nexo.

Instituída, a LAI define que qualquer cidadão brasileiro pode pedir a órgãos federais dados relativos à sua área de atuação. O órgão tem um prazo para cumprir a decisão e, caso se negue a divulgar os dados, o cidadão pode recorrer a instâncias superiores. As coisas melhoraram muito, ainda que não fossem perfeitas4. Após a aprovação da LAI, jornalistas e pesquisadores(as) tiveram acesso a uma montanha de dados públicos muito relevantes, mas também descobriram uma série de práticas adotadas por órgãos para driblar a lei e simular transparência.

Na sua dissertação do papel da LAI sobre a accountability democrática no Brasil, Fabiano Angélico define bem um problema que o professor canadense Greg Michener nomeou como baixa “capacidade de inferência”:

Não basta os dados estarem visíveis. Se eles tiverem pouca ou nenhuma utilidade, no sentido de possibilitar conclusões, a informação será praticamente inútil e não reforçará a accountability. Conclui-se, portanto, que o debate a respeito de transparência pública e sua ligação com a accountability democrática é importante, no Brasil, uma vez que mesmo os órgãos que argumentam ter uma atuação transparente (pela disponibilização de dados brutos) podem não colaborar com a accountability democrática do país.

Tudo isso para dizer que, entre 2011 e 2018, a LAI também foi alvo de tentativas de enfraquecê-la. Nada parecido com o que começou em 2019, porém. Opacidade não opera apenas no rasgar de uma lei de transparência. Há maneiras mais sutis de torná-la opaca.

Fernanda: Sobre a questão dos métodos. O país já tinha um arcabouço legal, uma estrutura administrativa, que não iria se desmontar do dia para a noite. O Estado já vinha, há uns 20 anos, construindo políticas de transparência, há uns 7 anos implementando a lei de acesso à informação, já chegou a ser referência no mundo no tema de transparência orçamentária, por exemplo, mas mesmo esse arcabouço legal, essa estrutura, acabou se mostrando muito frágil para conseguir conter essas frentes de retrocesso.

Eu diria que teve pelo uns três métodos nesse período, para desmontar essas políticas.

Primeiro, o método legislativo/normativo, que é a tentativa mesmo de alterar lei para restringir a transparência. Uma delas aconteceu logo de cara, no primeiro mês de governo, já mostrou que o governo ia pender mais para esse lado de sigilo, que foi a tentativa de… um decreto revendo quem podia classificar informação sigilosa, ampliando esses poderes para muito mais pessoas na máquina pública.

Depois, na pandemia, também teve a tentativa de alterar prazos da Lei de Acesso à Informação, mas felizmente todas essas tentativas acabaram sendo contidas por uma reação da sociedade, ou do Legislativo, que conseguiu segurar esses retrocessos legais propriamente dito.

Depois, temos um segundo método, que eu chamo de administrativo, que é um fluxo padrão mesmo. Você não precisa fazer nenhuma alteração legal. Você responde um pedido de acesso à informação, dizendo que respondeu, mas não respondeu. Evoca a Lei Geral de Proteção de Dados num mecanismo que não poderia ser evocado para não responder um pedido. Distorce a lei, fala que é um trabalho adicional, diz que não tem. E é muito difícil saber, porque a gente deveria ter um órgão de estado fazendo uma avaliação qualitativa dessas respostas, e mesmo em trabalhos de pesquisa que tentaram fazer isso, uma tentativa no meio do governo Bolsonaro, e olharam só para os meta dados — “x pedidos respondidos, x não respondidos, então não teve retrocesso” —, sem olhar para o conteúdo.

Esse é um jeito silencioso de negar informação e, pela percepção que temos do campo, das pessoas que atuam com acesso à informação, teve sim uma queda de qualidade nas respostas e, a partir da LGPD, isso ficou muito evidente, que foi uma desculpa, um pretexto extra para negar informação.

Esse método é o equivalente a passar a boiada que aconteceu na área ambiental.

O terceiro e último método é o sucateamento, “o último que sair apague a luz”, que é você cortar orçamento de área de dados, de institutos de pesquisas, deixar de atualizar bases de dados, até o Censo do IBGE sofreu. O DataSUS, departamento que cuida de todos os dados da área de saúde, departamento de tecnologia… enfim, vários exemplos de departamentos e estruturas que antes lidavam com informação e pesquisa e que deixam de receber orçamento para funcionarem minimamente.

Todos esses episódios que aconteceram, de apagão de dados, foi alguma variação ou sobreposição desses métodos.

No Brasil dos últimos anos, o sufocamento da transparência veio em diferentes sabores. A gente vai explorar alguns destes sabores agora. O primeiro envolve dar a muito mais gente o poder de classificar dados como sigilosos, algo que vimos logo no primeiro mês do governo Bolsonaro. Com o presidente em viagem internacional, o vice-presidente e presidente em exercício Hamilton Mourão promulgou um decreto que aumentava a quantidade de servidores que poderiam classificar dados como ultrassecretos de um punhado para mais de 200. Como explica o Poder360: “Antes, apenas o presidente, o vice-presidente, ministros de Estado, comandantes das Forças Armadas e chefes de missões diplomáticas permanentes no exterior tinham esta competência.” Segundo a LAI, dados classificados como ultrassecretos não podem ser divulgados por um período de 25 anos, passível de ser prorrogado pelo mesmo período apenas uma vez. A nova versão da lei também deu poder a mais de mil funcionários públicos a definirem dados como “secretos”, com acesso restrito por 15 anos.

A chicana terceiriza poder para que uma multidão de funcionários públicos esconda dados politicamente sensíveis nos níveis mais severos de restrição. Percebendo a manobra, a sociedade civil gritou — especialistas concordaram que a regra tornava padrão o sigilo, não a transparência. Abre aspas para nota divulgada pela Artigo 19, organização que defende dados abertos:

Permitir que pessoas em cargos comissionados – que são temporários e indicações de confiança, não necessariamente concursados e com conhecimento técnico – atribuam sigilo ultrassecreto e secreto a documentos e informações públicas contraria padrões internacionais, afronta princípios constitucionais e contraria o artigo 27 da Lei de Acesso à Informação (LAI). […] Fica evidente, portanto, a provável diminuição do acesso e circulação de informações públicas, que pode conduzir à violação do direito à informação da população como um todo.

Frente ao debate, Mourão colocou panos quentes, garantindo que “a transparência está mantida”. Lida no retrovisor, porém, a nota do Artigo 19 soa profética. O padrão dos anos seguintes seria utilizar chicanas jurídicas semelhantes para tornar opaco o vidro que separa o governo da sociedade. Entre tantas as mitologias criadas ao seu redor, o governo Bolsonaro se notabiliza pelo excesso de sigilos.

Um segundo sabor, ainda mais amargo que o de janeiro de 2019, apareceu três anos depois. Em fevereiro de 2022, o INEP, ligado ao Ministério da Educação (MEC), mudou a forma como divulga microdados educacionais brasileiros para tirar de circulação uma grande quantidade de informações.

Historicamente, o INEP divulga bases de dados completas do sistema educacional brasileiro, dos colégios às provas aplicadas pelo MEC. A granularidade dos dados era alta o suficiente para que você comparasse, por exemplo, como seu colégio se saiu em um teste em comparação a todos os colégios da sua cidade, do seu estado ou do país. Vários projetos se notabilizaram por construir pipelines e dashboards que facilitam a análise desses dados. Estamos falando, afinal de contas, de algo fundamental a qualquer país: a educação.

A divulgação de microdados do INEP nunca foi envolvida em embates políticos: entra governo, sai governo, e os microdados eram divulgados. Em fevereiro de 2022, a coisa mudou. Ao divulgar os dados do Enem 2020, o INEP aproveitou para fazer uma faxinas nos microdados: no do Enem sumiram “informações sobre a escola e município dos participantes”, no Censo da Educação Básica de 2021 “quatro das cinco bases de dados detalhados divulgadas anualmente foram suprimidas” e saiu do ar “a série histórica dos dados do Censo da Educação Básica e do Enem, além de todos os microdados de outros censos, como o da Educação Superior, e avaliações”, segundo reportagem do G1 publicadas pelas jornalistas Emily Santos e Ana Carolina Moreno. Sem a granularidade tradicional e o histórico de 25 anos, a análise de políticas, desempenhos e marcadores educacionais fica capenga, segundo especialistas ouvidos pelo G1:

Não é possível fazer um cruzamento de dados para descobrir, por exemplo, se a idade média dos estudantes negros de uma escola é mais alta do que a de estudantes brancos na mesma escola ou município, um indicador de que a distorção idade-série (indicador que mede o atraso de um estudante em relação à série em que ele deveria estar naquela idade) afeta os alunos e alunas de maneira desigual.

Seguiu-se a mesma grita justa da sociedade civil. Pressionada a se explicar, a gestão do INEP alegou que a divulgação dos microdados feria a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). A gente já falou no Tecnocracia de como a LGDP e sua fonte de inspiração, o GDPR na União Europeia, são tentativas de devolver ao usuário o controle sobre seus dados. Até a implementação do GDPR, em 2018, a coleta, obtenção, venda e repasse de dados pessoais se mantinha numa zona cinzenta enorme. Assim que a desculpa do INEP veio a público, de novo a sociedade civil reagiu em uníssona: era desculpinha, tentativa de dar um elã jurídico a outra chicana para diminuir a transparência dos dados públicos. Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS), Carlos Affonso Souza lembrou bem: a própria LGPD “permite no art.7, III, o ‘tratamento e o uso compartilhado de dados necessários à execução de políticas públicas’. A lei também dispõe sobre requisitos para anonimização de dados”, algo que o site sobre a lei na própria página do INEP esclarece. Dá para anonimizar os dados e não expor os alunos e manter os dados no ar e, principalmente, as análises exploratórias.

Vigente desde 2020 para proteger os interesses do cidadão, a LGPD foi transformada em arma pelo governo Bolsonaro para reduzir a transparência governamental. O caso do INEP não foi o único. Em setembro de 2021, o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) se negou a fornecer “ao menos 34 vezes informações sobre as entradas no palácio solicitadas pela LAI”, segundo reportagem do jornal Folha de S.Paulo. A leitura distorcida dos artigos 6 e 7 da LGPD alega que, por uma questão de “segurança da mais alta autoridade do Poder Executivo do país”, os dados não podem ser passados, como se a agenda do presidente não interessasse ao país. Acionada por meio de recursos, a Controladoria Geral da União (CGU) determinou que as planilhas deveriam ser entregues, mas o GSI se negou a entregá-las.

Relatório produzido pela Transparência Brasil em dezembro de 2021 mostra que o GSI foi o órgão de governo que mais usou a LGPD para não abrir dados que deveriam ser públicos — foram 50 em mais de dois anos. “O número de respostas negadas que mencionavam a LGPD saltou de 19, em 2019 — quando apareceram pela primeira vez, antes de a lei entrar em vigor — para 178 em 2021”, diz a análise feita em conjunto com a Abraji. Foram analisados pedidos e respostas públicos entre 2015 e 2021. Brasil, feijoada, nada acontece, aquela coisa toda.

O GSI é o líder, mas não é o único órgão a distorcer a LGPD. O Ministério da Economia passou a citar a lei para esconder o nome da empresas autuadas em fiscalizações contra o trabalho escravo. Abre aspas para o Fiquem Sabendo, organização que trabalha na abertura de dados do governo: “[A Subsecretaria de Inspeção do Trabalho] ‘entendeu por não disponibilizar, na íntegra, os relatórios circunstanciados de fiscalização […] até que sejam criadas ferramentas necessárias para que sejam tratadas todas as informações constantes de tais relatórios […]’, sem citar uma data para que isto aconteça.” Enrolação. Em vez de beneficiar apenas os cidadãos, a LGPD foi usada pelo governo Bolsonaro para proteger quem escraviza trabalhador em pleno 2022.

Voltando para a história do INEP: quase dois meses depois de faxinar os microdados, o órgão republicou os microdados do Censo da Educação Básica entre 2007 a 2020. O problema é que os novos dados foram editados para tirar quatro das cinco bases. Sem a granularidade original, a incapacidade de fazer análises profundas sobre como a educação brasileira está avançando segue. As séries históricas do Enem e do censo da Educação Superior não voltaram ao ar nem editados. Um mês depois do INEP republicar os dados mancos do Censo da Educação Básica, o Ministério Público Federal (MPF) acionou a Justiça para que o órgão divulgue “obrigatoriamente os microdados do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2020 e do Censo Escolar da Educação Básica de 2021”.

Um segundo estudo da Abraji sobre o tema descobriu que “o uso indevido da LGPD passou a ser uma barreira para obtenção de dados por meio da LAI”. Feito em parceira com a já citada Fiquem Sabendo, o Insper5 e a Fundação Getúlio Vargas (FGV), o estudo automatizou a coleta de 1.744 pedidos de LAI que citavam a LGPD entre 2019 e janeiro de 2022. A partir dessa base, foi selecionada uma amostra com 316 pedidos que foram analisados individualmente em dupla checagem e com pareceres de especialistas em dados abertos. Abre aspas para alguns dos achados principais:

Chama a atenção a quantidade de pedidos — quase 10% da amostra analisada — de bases anonimizadas (ou seja, sem dados pessoais de identificação) e que mesmo assim foram recusadas pelo governo federal, com o argumento genérico de que poderiam ferir os preceitos da LGPD. Por fim, os casos analisados indicam que, de cada quatro pedidos via LAI negados totalmente ou parcialmente com o argumento da LGPD, um tem indícios de que a recusa não está fundamentada. Restou evidente, portanto, entre os diversos achados da pesquisa, que serão esmiuçados no decorrer deste relatório, que o uso indevido da LGPD passou a ser uma barreira para obtenção de dados por meio da LAI.

O estudo, disponível na íntegra online, chama atenção para estratégia que já falamos com a fundamentação de Angélico: quando o pedido é concedido, mas vem com tarjas pretas que inviabilizam sua leitura. “Há diversos casos de respostas encaminhadas pelo governo federal, entre as analisadas na amostra desta pesquisa, a técnica (de ocultação) acabou por esconder informações que deveriam ser públicas ou dificultar sobremaneira a compreensão do documento.” Finge-se transparência no processo, mas, no fim das contas, o dado principal segue escondido.

A terceira e última estratégia para desmontar transparência que eu quero detalhar não envolve a distorção de uma legislação para dar um tom legal à ação: é pura cara de pau mesmo. Em abril de 2022, o já citado GSI se negou a informar ao jornal O Globo quantas vezes os pastores Arilton Moura e Gilmar Santos visitaram o Palácio do Planalto alegando questão de segurança. Moura e Santos supostamente faziam parte do balcão de propinas instalado no MEC pelo ex-ministro Milton Ribeiro, já preso e sob investigação da Polícia Federal. Frente à justa grita da sociedade civil, o GSI capitulou no dia seguinte e mostrou que Moura, suspeito de distribuir verbas do MEC, esteve 35 vezes no Planalto. Em 10 destas vezes, Santos esteve junto.

Na semana anterior do segundo turno, caso semelhante envolvendo a Caixa: os repórteres Eduardo Militão e Amanda Rossi, do UOL, questionaram o banco público sobre o “montante concedido em empréstimo consignado para beneficiários do Auxílio Brasil entre o primeiro e o segundo turno das eleições presidenciais. A linha de crédito é alvo de uma representação no TCU (Tribunal de Contas da União) por possível finalidade eleitoral”. A Caixa respondeu ao pedido com uma nota lacônica, distribuída a tantos outros jornalistas: “Oportunamente, a Caixa vai apresentar o balanço do Consignado Auxílio.” Entre os prazos e obrigações definidos pela lei 12.527 de 2011, que regulamenta a Lei de Acesso à Informação, não aparece a categoria “momento oportuno”. Segundo o UOL, a previsão é que os dados fossem fornecidos só depois do segundo turno. O dinheiro da Caixa é dinheiro público. Como bem define Gil Castelo Branco, da ONG Contas Abertas: “É dinheiro nosso: quem está emprestando não é a Caixa, somos nós. Uma interpretação cabível para a Caixa não estar divulgando as informações é porque acha que pode comprometer ou prejudicar essa reta final da campanha [de Bolsonaro].”

Há uma discussão muito importante sobre onde cabe o sigilo.

Fernanda: Sobre a questão de sigilo. Há muitos casos, sim, de sigilos, que são legítimos. É importante a gente observar duas coisas: primeiro, que o sigilo é exceção; segundo, que não existe sigilo eterno.

Por exemplo, questões de segurança nacional ou de agentes públicos têm prazo de validade. Informação sobre segurança de presidente, vale enquanto aquela pessoa exerce o cargo de presidente. Ou uma investigação em andamento, não pode divulgar informação porque pode prejudicar a investigação, mas essa termina e a informação tem que ser divulgada.

E também é importante dizer que é um sigilo que tem que ser proporcional. Você não pode divulgar os nomes de agentes de segurança, por exemplo, nas suas respectivas lotações para não ficarem visados, serem alvos de criminosos, mas nada impede de divulgar as folhas de pagamento daqueles agentes, encontrar uma forma de não vincular as pessoas às lotações, e assim por diante. É um princípio, de proporcionalidade.

Outro exemplo é o das licitações públicas. Você tem uma fase interna, de pesquisa de mercado, em que os prestadores de serviço não podem conhecer os preços, tem que ser guardado a sete chaves (às vezes não é), mas logo depois que passa essa fase tudo tem que ser aberto.

Tem outra categoria de informações que são os dados pessoais. Aí a gente não fala de sigilo. É uma informação que precisa ser protegida de modo geral. A lei fala em 100 anos, porque geralmente é o tempo que extrapola a vida de uma pessoa — até isso não é eterno — e é um direito dos cidadãos, ter os seus dados protegidos. O Estado só tem tantos dados do cidadão porque precisa prestar serviços, garantir saúde, educação, enfim.

E aí, esses direitos parecem colidir. É direito do cidadão saber onde e como os recursos estão sendo dados, então é importante ter transparência dos beneficiários de um programa social. Nesses casos, precisa ter uma ponderação entre o interesse público e o direito desses titulares de dados. Isso não é fácil, é uma avaliação que tem que ser feita constantemente, e um tema que temos que enfrentar cada vez mais e chegar a um equilíbrio que garanta o máximo de interesse público.

Tem métodos para isso, procedimentos, mas ainda precisamos avançar muito na nossa adminsitração pública para implementar isso de fato.

Foto panorâmica do Fórum Romano nos dias de hoje, em um dia ensolarado.
Fórum Romano hoje. Foro: Fabio Fistarol/Unsplash.

A gente já falou no Tecnocracia #24: o governo é o que a Luciana Gimenez chamaria de “ultimate data broker”. Não tem como você não repassar seus dados para ele. Exatamente por isso é que ele deveria ter muito cuidado com os seus dados. O episódio se desenvolve a partir do exemplo de um pescador no interior do Amazonas chamado Abimael. Quando o episódio foi publicado, em novembro de 2019, todos os dados do Abimael estavam disponíveis para qualquer um — nome, endereço, telefone… Alguém hackeou o Abimael? Não, era o próprio governo que estava expondo os dados. No site dados.gov.br você podia baixar os dados de Abimael e de mais centenas de pequenos produtores atrelados ao programa Selo Nacional de Agricultura Familiar (SENAF) em agosto de 2017 e janeiro, março e julho de 2018. Justiça seja feita: os dados disponíveis hoje não mais expõem dados pessoais. No caso do Abimael, o Governo fez o seu papel. Mas existe uma diferença enorme entre expôr dados desnecessários de um pescador e sufocar com diferentes subterfúgios toda a transparência de um governo. Para entender como caminha a educação e definir quais mudanças precisam ser implementadas para que a geração dos seus filhos aprendam, não precisa liberar o dia de aniversário, o endereço da casa e o tamanho da meia das crianças.

É nessa sobreposição que o governo Bolsonaro trabalhava: em nome de uma suposta defesa da “privacidade”, escondia tudo que pudesse comprometê-lo. Privacidade é fundamental, mas existem maneiras de se anonimizar dados. É um assunto delicado – durante a edição do roteiro, eu e o Ghedin entramos em um debate sobre o tema e ele deu um argumento que eu 100% subscrevo: “Há dados que não ferem a privacidade dos envolvidos se divulgados. Pelo contrário, é preferível que seja assim porque o benefício à coletividade é inestimável, por vezes fundamental.” O balanço é esse: abrir para trazer inegáveis benefícios à sociedade, como conhecer para onde estamos caminhando.

Vamos voltar às duas sociedades do início do episódio. Primeiro, os gregos: não existe democracia sem responsabilização. Sem dados, não existem evidências. Sem investigação, não existem culpados. Completa-se o ciclo da impunidade. O governo Bolsonaro praticou uma série de inovações para acabar com a transparência governamental sem o alarde que uma derrubada da LAI provocaria. Em vez de enfiar a faca, você vai desnutrindo aos poucos, deixando definhar, cercando cada vez mais.

Agora, lembremos dos romanos. Ao se ver em decadência, a sociedade romana resolveu ignorar o próprio passado e, literalmente, dá-lo às vacas. Precisou uma galera séculos depois se interessar para que o passado fosse escavado para então ser entendido. Tudo indica que esse soterramento da transparência está prestes a terminar — mudanças de governo tendem acelerar a liberação de dados enterrados. Só com um panorama honesto do que acontecia dentro do governo é possível começar a falar em investigação, responsabilização e accountability. Eu sou cuidadoso na escolha das palavras aqui já que, infelizmente, essas inovações de opacidade devem inspirar governantes pelas décadas seguintes. O fato de que o governo termina em 31 de dezembro é uma excelente notícia para a transparência. Em sua essência, a LAI permite que qualquer cidadão peça dados públicos a qualquer órgão público. Se você não sabe como fazer isso, sem problema: a Escola de Dados e o Fiquem Sabendo têm guias super mastigados dando os caminhos.

Como já nos ensinaram os italianos durante o Iluminismo, antes de analisar você precisa cavar. Está na hora de preparar as pás.

Foto do topo: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil.

  1. Qual não está?
  2. Raphael Sanzio não ouviu o episódio passado do Tecnocracia.
  3. Entendeu agora de onde vem a expressão “mármore de Carrara”?
  4. O que na vida é?
  5. Full disclosure: eu dou aula no Insper, mas não tive qualquer envolvimento com a realização e divulgação do estudo.

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Conta o mito que cerca de 750 antes de Cristo dois gêmeos foram abandonados pela mãe nas margens do rio Tibre, na Itália, após o pai mandar matá-los. Segue a lenda que aquele rio tinha um deus específico chamado Tiberino que salvou os gêmeos da morte e permitiu que, mais tarde, uma loba os encontrasse no meio do mato e os alimentassem. O leite da loba garantiu que Rômulo e Remo sobrevivessem até que um pastor os adotassem.

A história da loba alimentando os gêmeos é o mito no qual se baseia Roma. Se você passeia pelas ruas da cidade, não é difícil encontrar estátuas que representam o episódio da mitologia romana. Há incontáveis lobas espalhadas por Roma, não apenas em estátuas e pinturas. O escudo do maior clube de futebol da cidade tem a tal loba com Rômulo e Remo prestes a abocanhar seus úberes. A mitologia conta que ambos cresceram e se tornaram líderes de uma cidade que atraía cada vez mais gente. A história não acaba tão bem, já que o Rômulo mata o Remo, mas isso a gente deixa para depois.

A lenda da loba marca o começo de uma das civilizações mais influentes que a humanidade já produziu. Dos gêmeos abandonados à margem do Tibre perto de 750 antes de Cristo à deposição do último imperador do Império Romano do Ocidente na Itália, Romulus Augustulus, em 476 depois de Cristo, Roma saiu de um povoado nascido a leite de loba para o maior império do planeta, comandando regiões em grande parte da Europa, no norte da África e no Oriente, onde hoje está Istambul. O impacto de Roma não para no lado bélico: até hoje, referências culturais, termos científicos e a base do nosso ordenamento jurídico, todos criados em Roma, nos acompanham.

A ascensão e queda de Roma, completa ou em trechos, é uma história interessantíssima que já foi amplamente explorada em todos os tipos de mídia. Se você quiser um livro, existe o seminal The history of the decline and fall of the Roman Empire, um catatau de seis volumes escrito pelo historiador inglês Edward Gibbon em 1776 e até hoje considerada a melhor obra sobre o tema. Se você gosta de TV misturando história e putaria, a HBO fez uma série excelente chamada Roma. Para falar de filmes teríamos que ficar uma vida aqui, mas Gladiador e A queda do império romano são ótimos começos. E nos games há um jogo de estratégia excelente chamado Rome: Total war que está sempre em promoção na Steam1.

Do reino à república e ao império, Roma teve várias fases. Em todas elas, seu coração era um espaço de dois hectares bem no centro da cidade, bem em frente ao Coliseu: era o Fórum Romano. O fórum era o centro da vida de Roma. Era ali que políticos e candidatos faziam discursos, criminosos eram julgados, o exército romano desfilava os tesouros, escravos e animais trazidos de batalhas distantes, mercadores faziam negócios, sacrifícios para deuses eram feitos e parte da vida social e cívica se desenvolvia. Era no Fórum Romano que ficava o Senado Romano, um modelo copiado pelo resto da humanidade até hoje. Foi em um espaço em frente ao Senado no Fórum que Júlio César, cambaleando após ser emboscado e esfaqueado por outros senadores, caiu no chão sangrando e, antes de morrer, murmurou aquela frase clássica: “até tu, Brutus?” Se Roma era um corpo, o Fórum Romano era seu coração.

Se você pretende visitar Roma — e eu super aconselho a ir —, o Fórum é uma visita obrigatória. Mas não espere encontrar tudo em excelente estado de preservação. O que vai chamar sua atenção é que o Fórum hoje é um apanhado de ruínas que ainda são escavadas e trabalhadas para revelar como os romanos viviam e se organizavam. “Claro, Guilherme, é antigo para caramba, vai ter só ruína mesmo.” Uma parte do argumento faz sentido — o tempo é menos duro com mármores e pedras do que com o nosso corpo, mas ele ainda é implacável. Há um desgaste natural de algo construído há tanto tempo.

Desenho em preto e branco de uma Roma abandonada, com prédios decadentes e algumas pessoas e cavalos no canto inferior direito.
Desenho: Davis Museum.

Tem outro fator em que quero me focar. Após a queda do Império Romano do Ocidente, o Fórum virou um grande desmanche — pedras que ornavam templos e prédios antigos eram arrancados pelo valor e construções eram destruídas para reaproveitar seus mármores em novos prédios. Perto de 660 d.C., o então imperador Constante II mandou arrancar os telhados dos prédios, o que acelerou ainda mais a degradação. Em plena era Medieval, perto de 800 d.C., o Fórum tinha sido abandonado como centro da vida romana e, além do desmanche, servia também como pasto e uma espécie de lixão. Desenho (acima) do arqueólogo italiano Giovanni Piranesi mostra as carroças e os animais andando perto de ruínas e prédios clássicos ainda de pé. Durante séculos, a mistura entre deterioração natural e ação humana de descarte foi soterrando o Fórum. O lugar onde Júlio César morreu estava debaixo de toneladas de terra e lixo.

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Durante séculos, as ruínas eram encaradas como a marca de um passado que não merecia consideração. O que passou, passou e, por isso, não vale nem a pena preservar ou questionar. Esqueça, siga adiante e aproveite o que der. Por mais que existam relatos na Mesopotâmia cinco séculos antes de Cristo e na China no século X, essa coisa de descobrir, preservar e estudar prédios, cidades e artefatos antigos, a base do que a gente conhece hoje como arqueologia, só começou a engrenar depois do século XV, quando a Europa passava pelo Renascimento. O sujeito considerado pai da arqueologia moderna foi um inglês chamado John Aubrey que, entre tantos trabalhos relevantes, foi um dos responsáveis por escavar Stonehenge. Os buracos de giz que cercam Stonehenge não se chamam buracos de Aubrey à toa.

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Foi no século XV, dentro desta onda do Renascimento, que uma das Tartarugas Ninja ajudou a aumentar o interesse da sociedade italiana em entender o que tinha acontecido com seus antepassados. O arquiteto Filippo Brunelleschi e o escultor Donatello Bardi (séculos mais tarde homenageado com a tartaruga que usa um bastão de madeira) se mudaram para Roma para estudar como incorporar em suas próprias obras elementos presentes nas ruínas.

Um dos lugares preferidos de estudo da dupla era o Fórum Romano. Ao usarem aqueles elementos em suas obras, Brunelleschi e Donatello engrossaram a proposta do Renascimento de deixar de tratar as ruínas como algo irrelevante, mas sim algo a ser preservado, estudado e recuperado.

Curiosidade: Donatello foi o artista renascentista homenageado pelas Tartarugas Ninja que nasceu antes. Décadas depois da sua morte, as outras três tartarugas tiveram interações específicas no alto do Renascimento. Michelangelo Buonarroti foi contratado pela prefeitura de Florença para criar uma estátua no topo da catedral da cidade, mas o trabalho ficou tão bom que um conselho de notáveis votou para trazer a estátua para o chão. Entre os que votaram contra estava Leonardo da Vinci. Mais novo de todos, Raphael Sanzio virou queridinho do Vaticano, o que despertou a inveja mortal de Michelangelo — mortal para o Raphael, que morreu com 37 anos, supostamente de sífilis de tanto que ele transava2. Se a rivalidade entre Michelangelo e Leonardo era aquela de dois sujeitos da mesma geração que se odeiam e se tornam melhores, a entre Raphael e Michelangelo era do velho neurótico que vê um sujeito mais novo e tão talentoso quanto cair na graças do principal cliente e se questiona furiosamente se seu tempo já passou.

A última conexão entre as quatro tartarugas é entre Donatello e Michelangelo: a cidade de Florença encomendou um pedaço de mármore da cidade de Carrara3 nas medidas tradicionais que o maior escultor da época, Donatello, gostava — mais fina e alta. Um dos seus alunos foi escolhido para criar daquele pedaço de pedra um David. Agostino di Duccio começou com as pernas, mas parou. Cerca de 30 anos depois, Michelangelo pegaria o pedaço de mármore já começado para esculpir uma das suas obras-primas, o David. O dia em que estivermos tomando uma cerveja você me pergunta por que eu gosto tanto do David. Todo mundo fala do livro do Walter Isaacson sobre o Leonardo da Vinci (muito elogiado, mas eu nunca li), mas tem outra dica excelente sobre os artistas: a biografia do Michelangelo escrita pelo Martin Gayford. Foi editada no Brasil pela Cosac e está fora de catálogo. Voltando.

Quando você visita o Fórum hoje, percebe algumas coisas: a primeira é que o fórum está abaixo da altura da rua. A segunda é que nem todos os prédios têm entradas na mesma altura. As construções originais do fórum são mais baixas, enquanto igrejas construídas no tempo do lixão são mais altas — tanta terra e detrito durante séculos elevou o chão. Então o Fórum Romano é, hoje, uma mistura entre construções originais e outras que foram feitas nas suas diferentes fases.

Vamos entender uma coisa: as toneladas de terra e detritos que se acumularam e soterraram a história de Roma estavam lá por desinteresse da sociedade, aquela jogada de ombros coletiva que todos dão quando algo que estava bombando entra numa espiral da morte. É o desinteresse que deixa a terra acumular e esconde o passado. Guarde essa imagem na sua cabeça. Fora a galera comum, a Roma antiga foi composta por gênios e malucos. No primeiro grupo estão nomes como Cícero, Sêneca e Hipócrates, além dos inventores do cimento, dos algarismos romanos e da sanitização. No segundo, estão Calígula, que nomeou o cavalo Incitatus como cônsul, e, claro, Nero, o sujeito que literalmente botou fogo na coisa toda.

Agora, a gente vai para um outro momento do tempo-espaço em que, ao contrário de Roma, só os malucos estão no poder: o Brasil entre 2019 e 2022. Desde seus primeiros meses, o governo de Jair Bolsonaro se esforçou para estrangular a transparência que se espera de qualquer governo republicano e democrata no século XXI. A fórmula é muito simples: sem dados, não existem evidências. Sem investigações, não existem crimes. Sem responsabilização, há a certeza de que o comportamento criminoso continuará.

O 12º e penúltimo episódio da quarta temporada do Tecnocracia vai falar sobre transparência, opacidade e como, em vez do descaso e desinteresse da sociedade, é possível você mesmo adotar estratégias para soterrar informações importantes para a sociedade. Mais que isso: você está acostumado(a) a ouvir apenas minha voz por aqui. Hoje é um dos raros episódios em que eu terei companhia para me ajudar a explicar essa questão.

A cada quinze dias (às vezes um pouco mais, às vezes uns meses mais), o Tecnocracia mistura detalhes curiosos sobre Tartarugas Ninjas a teses de doutorado e recortes de jornal para tentar mostrar que a tecnologia mais avançada do mundo não resolve a intenção de esconder informações. Eu sou o Guilherme Felitti e o Tecnocracia está na campanha de financiamento coletivo do Manual do Usuário. A partir do plano II (R$ 16 por mês), você entra no grupo reservado onde costuma ter o Tecnocracia Balcão e ainda ganha adesivos. A única parte mais opaca deste podcast envolve a frase que eu falei há pouco de que tem episódio a cada quinze dias, mas eu mesmo já fiz piada sobre isso, então você já foi avisado, não tem nada de enganação.

Para ajudar a explicar o conceito, eu convidei a Fernanda Campagnucci, diretora-geral da Open Knowledge Brasil, uma organização da sociedade civil que estuda e monitora transparência e governos abertos. Eu já falei isso para ela numa banca de TCC que dividimos há alguns meses, mas agora repito para vocês ouvirem também: a Fernanda é uma das pessoas que mais entende de dados abertos no Brasil. No meio do episódio você vai ouvir a Fernanda comentando alguns pontos e abrilhantando o Tecnocracia.

Fernanda: A gente pode dizer que transparência é uma senhora de pelo menos 300 anos. Apesar de hoje estar muito associada à questão de dados, tecnologia, essa ideia ganhou fama lá no Iluminismo, no século XVII, e é importante regatarmos isso porque hoje, por incrível que pareça, há uns movimentos obscurantistas mesmo, querendo resgatar valores da Idade Média, com negacionismo… enfim.

Essa ideia de que o Estado, os governos precisam prestar contas dos seus atos, nasceu junto com a própria definição de Estados. O desenho do Estado liberal, e a própria noção de indivíduos, de direitos individuais.

O que o Iluminismo estava respondendo? A que ele estava se contrapondo naquela época? A forma predominante de poder da Antiguidade, que eram os segredos de Estados. Se a transparência tem 300 anos, essa ideia de segredos de Estados é muito mais antiga, por isso que é tão difícil da gente se livrar dela.

Essa frase de que “informação é poder” já aparece em textos muito antigos. O Tácito, um historiador latino, o primeiro a falar de que essa ideia de que o segredo de Estado é condição do exercício de poder, e no primeiro século, então a gente pode ver essa relação histórica: onde tem regime autoritário, tem menos circulação de informação. A gente vê em ditaduras, que tem censuras… E o Iluminismo se contrapôs a isso na época, inclusive com essa ideia de que o Estados só tem legitimidade se publica informação, algo muito semelhante ao que a gente tem hoje. O Diário Oficial é isso, é a legitimidade do ato porque ele é publicado.

Eu vou falar rapidinho de três exemplos que acho interessantes e que reverberam até hoje:

  1. A Suécia tem a primeira lei de acesso à informação em 1766.
  2. Na França, na mesma época, alguns anos antes da Revolução Francesa, a primeira divulgação de um orçamento público do mundo. E ali, porque a burguesia estava discutindo com o Estado os gastos de guerra, os impostos subindo, todo aquele caldo da Revolução Francesa estava demandando também mais transparência porque era uma questão de disputa de poder.
  3. E o parlamento britânico, nessa mesma época, também tudo isso, com inspiração do Iluminismo, começa a divulgar os discursos na íntegra dos lordes e dos parlamentares na Câmara dos Comuns.

Vou dar um super salto na história. Depois, temos algumas ondas de leis de acesso à informação. A mais recente delas, foi nos anos 2000, que tínhamos alguns países no mundo com leis de aceso à informação, na Europa e nos Estados Unidos; aqui na América Latina a Colômbia foi uma das primeiras, mas nos anos 2000 que isso se difundiu no mundo, impulsionado pela internet.

Aqui no Brasil foi tardio. Tivemos em 2011 a nossa Lei de Acesso à Informação. Se comparada a essa história toda que falei, realmente ela é recente, mas ela já veio pelo menos com um desenho mais avançado, justamente por ser tardia, que tem lá a ideia de formato aberto de dados, de acesso automatizado, que nos ajuda na demanda por dados abertos e por informações de mais qualidade.

Transparência e democracia andam de mãos dadas. Quem nos ensinou isso foram aqueles que cunharam os dois conceitos e também uma escola de arte na qual os romanos se inspiraram imensamente: os gregos.

A partir do século V a.C., a Grécia entendeu que um governo aberto facilita a participação popular e incentiva a fiscalização dos eleitos para cargos representativos. Atenas montou uma instituição chamada de “euthyna” que exigia dos representantes eleitos uma conduta íntegra e prestação de contas anual aos cidadãos. O verbete do Oxford Classical Dictionary para “euthyna” explica melhor:

Euthyna (do grego “endireitar”) era a fiscalização de contas que todo funcionário público tinha que submeter ao término de seu cargo. Em Atenas, a fiscalização dividia-se em duas partes, o “logos” (“conta”), referente ao manejo do dinheiro público e tratado por um conselho de dez “logistai” (“contadores”), e o “euthynai” propriamente dito, uma oportunidade de levantar qualquer outra questão ou objeção à sua conduta no cargo, tratada por um conselho de dez “euthynoi” (“endireitadores”) nomeados pelo conselho (“boulē”). Esses funcionários poderiam rejeitar as acusações ou repassá-las aos tribunais.

Aqui a palavra chave é “responsabilidade”, tradução de um termo que cabe mas não encaixa direitinho como seu original anglófono que a Luciana Gimenez chamaria de “accountability”. Para os gregos, responsabilidade e democracia andavam juntas, mas a primeira era tão importante que precedia a segunda. Abre aspas para o artigo “The straight and the crooked: Legal accountability in ancient Greece”, publicado pela jurista e pesquisadora Deirdre Dionysia von Dornum no Columbia Law Review em 1997:

Os antigos gregos eram obcecados em manter seus funcionários legalmente responsáveis por suas ações no cargo. Pesquisadores estudaram os complexos mecanismos legais desenvolvidos por Atenas no século V a.C. para controlar as ações oficiais. Presume-se uma conexão entre a preocupação com a responsabilização e um sistema democrático de governo, porque a maioria das evidências históricas existentes é daquela época. Historiadores tendem a atrelar a responsabilização à democracia, mas este artigo mostra que os sistemas e a ideologia de responsabilidade existiam na Grécia muito antes do surgimento da democracia: já no século oito antes de Cristo, a responsabilidade é perceptível como um valor político e cultural.

Ainda que não tenham nascido juntas, democracia e responsabilidade/responsabilização andam de mãos dadas. Nas palavras do pesquisador Andreas Schedler citadas na dissertação de mestrado do também pesquisador Fabiano Angélico, “accountability” é a “obrigação de abrir-se ao público, obrigação de explicar e justificar suas ações e subordinação à possibilidade de sanções”. Essa noção de ter um “governo aberto” que libera dados tanto para incentivar a participação popular como para fiscalizar seus representantes começou a ganhar força no Iluminismo e se transformou no século XX em leis que obrigam as diferentes esferas do governo a abrirem seus dados a todos os cidadãos.

Nos EUA, a Freedom of Information Act (abreviada como FOIA) foi aprovada em 1966, não sem passar por choro e ranger de dentes. O Brasil aprovou em 2011 uma lei semelhante chamada Lei de Acesso à Informação (LAI). Só demorou 23 anos para regulamentar algo previsto na Constituição de 1988 — o famoso “antes tarde do que nunca”. O debate sobre transparência no Brasil nasce na década de 1970, em plena Ditadura Militar e, durante a redemocratização, “ganha importância a crítica ao sigilo e controle estatal dos fluxos de informação e a promoção de ideias relacionadas ao direito de consulta aos arquivos públicos”, segundo artigo do sociólogo João Francisco Resende no Nexo.

Instituída, a LAI define que qualquer cidadão brasileiro pode pedir a órgãos federais dados relativos à sua área de atuação. O órgão tem um prazo para cumprir a decisão e, caso se negue a divulgar os dados, o cidadão pode recorrer a instâncias superiores. As coisas melhoraram muito, ainda que não fossem perfeitas4. Após a aprovação da LAI, jornalistas e pesquisadores(as) tiveram acesso a uma montanha de dados públicos muito relevantes, mas também descobriram uma série de práticas adotadas por órgãos para driblar a lei e simular transparência.

Na sua dissertação do papel da LAI sobre a accountability democrática no Brasil, Fabiano Angélico define bem um problema que o professor canadense Greg Michener nomeou como baixa “capacidade de inferência”:

Não basta os dados estarem visíveis. Se eles tiverem pouca ou nenhuma utilidade, no sentido de possibilitar conclusões, a informação será praticamente inútil e não reforçará a accountability. Conclui-se, portanto, que o debate a respeito de transparência pública e sua ligação com a accountability democrática é importante, no Brasil, uma vez que mesmo os órgãos que argumentam ter uma atuação transparente (pela disponibilização de dados brutos) podem não colaborar com a accountability democrática do país.

Tudo isso para dizer que, entre 2011 e 2018, a LAI também foi alvo de tentativas de enfraquecê-la. Nada parecido com o que começou em 2019, porém. Opacidade não opera apenas no rasgar de uma lei de transparência. Há maneiras mais sutis de torná-la opaca.

Fernanda: Sobre a questão dos métodos. O país já tinha um arcabouço legal, uma estrutura administrativa, que não iria se desmontar do dia para a noite. O Estado já vinha, há uns 20 anos, construindo políticas de transparência, há uns 7 anos implementando a lei de acesso à informação, já chegou a ser referência no mundo no tema de transparência orçamentária, por exemplo, mas mesmo esse arcabouço legal, essa estrutura, acabou se mostrando muito frágil para conseguir conter essas frentes de retrocesso.

Eu diria que teve pelo uns três métodos nesse período, para desmontar essas políticas.

Primeiro, o método legislativo/normativo, que é a tentativa mesmo de alterar lei para restringir a transparência. Uma delas aconteceu logo de cara, no primeiro mês de governo, já mostrou que o governo ia pender mais para esse lado de sigilo, que foi a tentativa de… um decreto revendo quem podia classificar informação sigilosa, ampliando esses poderes para muito mais pessoas na máquina pública.

Depois, na pandemia, também teve a tentativa de alterar prazos da Lei de Acesso à Informação, mas felizmente todas essas tentativas acabaram sendo contidas por uma reação da sociedade, ou do Legislativo, que conseguiu segurar esses retrocessos legais propriamente dito.

Depois, temos um segundo método, que eu chamo de administrativo, que é um fluxo padrão mesmo. Você não precisa fazer nenhuma alteração legal. Você responde um pedido de acesso à informação, dizendo que respondeu, mas não respondeu. Evoca a Lei Geral de Proteção de Dados num mecanismo que não poderia ser evocado para não responder um pedido. Distorce a lei, fala que é um trabalho adicional, diz que não tem. E é muito difícil saber, porque a gente deveria ter um órgão de estado fazendo uma avaliação qualitativa dessas respostas, e mesmo em trabalhos de pesquisa que tentaram fazer isso, uma tentativa no meio do governo Bolsonaro, e olharam só para os meta dados — “x pedidos respondidos, x não respondidos, então não teve retrocesso” —, sem olhar para o conteúdo.

Esse é um jeito silencioso de negar informação e, pela percepção que temos do campo, das pessoas que atuam com acesso à informação, teve sim uma queda de qualidade nas respostas e, a partir da LGPD, isso ficou muito evidente, que foi uma desculpa, um pretexto extra para negar informação.

Esse método é o equivalente a passar a boiada que aconteceu na área ambiental.

O terceiro e último método é o sucateamento, “o último que sair apague a luz”, que é você cortar orçamento de área de dados, de institutos de pesquisas, deixar de atualizar bases de dados, até o Censo do IBGE sofreu. O DataSUS, departamento que cuida de todos os dados da área de saúde, departamento de tecnologia… enfim, vários exemplos de departamentos e estruturas que antes lidavam com informação e pesquisa e que deixam de receber orçamento para funcionarem minimamente.

Todos esses episódios que aconteceram, de apagão de dados, foi alguma variação ou sobreposição desses métodos.

No Brasil dos últimos anos, o sufocamento da transparência veio em diferentes sabores. A gente vai explorar alguns destes sabores agora. O primeiro envolve dar a muito mais gente o poder de classificar dados como sigilosos, algo que vimos logo no primeiro mês do governo Bolsonaro. Com o presidente em viagem internacional, o vice-presidente e presidente em exercício Hamilton Mourão promulgou um decreto que aumentava a quantidade de servidores que poderiam classificar dados como ultrassecretos de um punhado para mais de 200. Como explica o Poder360: “Antes, apenas o presidente, o vice-presidente, ministros de Estado, comandantes das Forças Armadas e chefes de missões diplomáticas permanentes no exterior tinham esta competência.” Segundo a LAI, dados classificados como ultrassecretos não podem ser divulgados por um período de 25 anos, passível de ser prorrogado pelo mesmo período apenas uma vez. A nova versão da lei também deu poder a mais de mil funcionários públicos a definirem dados como “secretos”, com acesso restrito por 15 anos.

A chicana terceiriza poder para que uma multidão de funcionários públicos esconda dados politicamente sensíveis nos níveis mais severos de restrição. Percebendo a manobra, a sociedade civil gritou — especialistas concordaram que a regra tornava padrão o sigilo, não a transparência. Abre aspas para nota divulgada pela Artigo 19, organização que defende dados abertos:

Permitir que pessoas em cargos comissionados – que são temporários e indicações de confiança, não necessariamente concursados e com conhecimento técnico – atribuam sigilo ultrassecreto e secreto a documentos e informações públicas contraria padrões internacionais, afronta princípios constitucionais e contraria o artigo 27 da Lei de Acesso à Informação (LAI). […] Fica evidente, portanto, a provável diminuição do acesso e circulação de informações públicas, que pode conduzir à violação do direito à informação da população como um todo.

Frente ao debate, Mourão colocou panos quentes, garantindo que “a transparência está mantida”. Lida no retrovisor, porém, a nota do Artigo 19 soa profética. O padrão dos anos seguintes seria utilizar chicanas jurídicas semelhantes para tornar opaco o vidro que separa o governo da sociedade. Entre tantas as mitologias criadas ao seu redor, o governo Bolsonaro se notabiliza pelo excesso de sigilos.

Um segundo sabor, ainda mais amargo que o de janeiro de 2019, apareceu três anos depois. Em fevereiro de 2022, o INEP, ligado ao Ministério da Educação (MEC), mudou a forma como divulga microdados educacionais brasileiros para tirar de circulação uma grande quantidade de informações.

Historicamente, o INEP divulga bases de dados completas do sistema educacional brasileiro, dos colégios às provas aplicadas pelo MEC. A granularidade dos dados era alta o suficiente para que você comparasse, por exemplo, como seu colégio se saiu em um teste em comparação a todos os colégios da sua cidade, do seu estado ou do país. Vários projetos se notabilizaram por construir pipelines e dashboards que facilitam a análise desses dados. Estamos falando, afinal de contas, de algo fundamental a qualquer país: a educação.

A divulgação de microdados do INEP nunca foi envolvida em embates políticos: entra governo, sai governo, e os microdados eram divulgados. Em fevereiro de 2022, a coisa mudou. Ao divulgar os dados do Enem 2020, o INEP aproveitou para fazer uma faxinas nos microdados: no do Enem sumiram “informações sobre a escola e município dos participantes”, no Censo da Educação Básica de 2021 “quatro das cinco bases de dados detalhados divulgadas anualmente foram suprimidas” e saiu do ar “a série histórica dos dados do Censo da Educação Básica e do Enem, além de todos os microdados de outros censos, como o da Educação Superior, e avaliações”, segundo reportagem do G1 publicadas pelas jornalistas Emily Santos e Ana Carolina Moreno. Sem a granularidade tradicional e o histórico de 25 anos, a análise de políticas, desempenhos e marcadores educacionais fica capenga, segundo especialistas ouvidos pelo G1:

Não é possível fazer um cruzamento de dados para descobrir, por exemplo, se a idade média dos estudantes negros de uma escola é mais alta do que a de estudantes brancos na mesma escola ou município, um indicador de que a distorção idade-série (indicador que mede o atraso de um estudante em relação à série em que ele deveria estar naquela idade) afeta os alunos e alunas de maneira desigual.

Seguiu-se a mesma grita justa da sociedade civil. Pressionada a se explicar, a gestão do INEP alegou que a divulgação dos microdados feria a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). A gente já falou no Tecnocracia de como a LGDP e sua fonte de inspiração, o GDPR na União Europeia, são tentativas de devolver ao usuário o controle sobre seus dados. Até a implementação do GDPR, em 2018, a coleta, obtenção, venda e repasse de dados pessoais se mantinha numa zona cinzenta enorme. Assim que a desculpa do INEP veio a público, de novo a sociedade civil reagiu em uníssona: era desculpinha, tentativa de dar um elã jurídico a outra chicana para diminuir a transparência dos dados públicos. Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS), Carlos Affonso Souza lembrou bem: a própria LGPD “permite no art.7, III, o ‘tratamento e o uso compartilhado de dados necessários à execução de políticas públicas’. A lei também dispõe sobre requisitos para anonimização de dados”, algo que o site sobre a lei na própria página do INEP esclarece. Dá para anonimizar os dados e não expor os alunos e manter os dados no ar e, principalmente, as análises exploratórias.

Vigente desde 2020 para proteger os interesses do cidadão, a LGPD foi transformada em arma pelo governo Bolsonaro para reduzir a transparência governamental. O caso do INEP não foi o único. Em setembro de 2021, o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) se negou a fornecer “ao menos 34 vezes informações sobre as entradas no palácio solicitadas pela LAI”, segundo reportagem do jornal Folha de S.Paulo. A leitura distorcida dos artigos 6 e 7 da LGPD alega que, por uma questão de “segurança da mais alta autoridade do Poder Executivo do país”, os dados não podem ser passados, como se a agenda do presidente não interessasse ao país. Acionada por meio de recursos, a Controladoria Geral da União (CGU) determinou que as planilhas deveriam ser entregues, mas o GSI se negou a entregá-las.

Relatório produzido pela Transparência Brasil em dezembro de 2021 mostra que o GSI foi o órgão de governo que mais usou a LGPD para não abrir dados que deveriam ser públicos — foram 50 em mais de dois anos. “O número de respostas negadas que mencionavam a LGPD saltou de 19, em 2019 — quando apareceram pela primeira vez, antes de a lei entrar em vigor — para 178 em 2021”, diz a análise feita em conjunto com a Abraji. Foram analisados pedidos e respostas públicos entre 2015 e 2021. Brasil, feijoada, nada acontece, aquela coisa toda.

O GSI é o líder, mas não é o único órgão a distorcer a LGPD. O Ministério da Economia passou a citar a lei para esconder o nome da empresas autuadas em fiscalizações contra o trabalho escravo. Abre aspas para o Fiquem Sabendo, organização que trabalha na abertura de dados do governo: “[A Subsecretaria de Inspeção do Trabalho] ‘entendeu por não disponibilizar, na íntegra, os relatórios circunstanciados de fiscalização […] até que sejam criadas ferramentas necessárias para que sejam tratadas todas as informações constantes de tais relatórios […]’, sem citar uma data para que isto aconteça.” Enrolação. Em vez de beneficiar apenas os cidadãos, a LGPD foi usada pelo governo Bolsonaro para proteger quem escraviza trabalhador em pleno 2022.

Voltando para a história do INEP: quase dois meses depois de faxinar os microdados, o órgão republicou os microdados do Censo da Educação Básica entre 2007 a 2020. O problema é que os novos dados foram editados para tirar quatro das cinco bases. Sem a granularidade original, a incapacidade de fazer análises profundas sobre como a educação brasileira está avançando segue. As séries históricas do Enem e do censo da Educação Superior não voltaram ao ar nem editados. Um mês depois do INEP republicar os dados mancos do Censo da Educação Básica, o Ministério Público Federal (MPF) acionou a Justiça para que o órgão divulgue “obrigatoriamente os microdados do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2020 e do Censo Escolar da Educação Básica de 2021”.

Um segundo estudo da Abraji sobre o tema descobriu que “o uso indevido da LGPD passou a ser uma barreira para obtenção de dados por meio da LAI”. Feito em parceira com a já citada Fiquem Sabendo, o Insper5 e a Fundação Getúlio Vargas (FGV), o estudo automatizou a coleta de 1.744 pedidos de LAI que citavam a LGPD entre 2019 e janeiro de 2022. A partir dessa base, foi selecionada uma amostra com 316 pedidos que foram analisados individualmente em dupla checagem e com pareceres de especialistas em dados abertos. Abre aspas para alguns dos achados principais:

Chama a atenção a quantidade de pedidos — quase 10% da amostra analisada — de bases anonimizadas (ou seja, sem dados pessoais de identificação) e que mesmo assim foram recusadas pelo governo federal, com o argumento genérico de que poderiam ferir os preceitos da LGPD. Por fim, os casos analisados indicam que, de cada quatro pedidos via LAI negados totalmente ou parcialmente com o argumento da LGPD, um tem indícios de que a recusa não está fundamentada. Restou evidente, portanto, entre os diversos achados da pesquisa, que serão esmiuçados no decorrer deste relatório, que o uso indevido da LGPD passou a ser uma barreira para obtenção de dados por meio da LAI.

O estudo, disponível na íntegra online, chama atenção para estratégia que já falamos com a fundamentação de Angélico: quando o pedido é concedido, mas vem com tarjas pretas que inviabilizam sua leitura. “Há diversos casos de respostas encaminhadas pelo governo federal, entre as analisadas na amostra desta pesquisa, a técnica (de ocultação) acabou por esconder informações que deveriam ser públicas ou dificultar sobremaneira a compreensão do documento.” Finge-se transparência no processo, mas, no fim das contas, o dado principal segue escondido.

A terceira e última estratégia para desmontar transparência que eu quero detalhar não envolve a distorção de uma legislação para dar um tom legal à ação: é pura cara de pau mesmo. Em abril de 2022, o já citado GSI se negou a informar ao jornal O Globo quantas vezes os pastores Arilton Moura e Gilmar Santos visitaram o Palácio do Planalto alegando questão de segurança. Moura e Santos supostamente faziam parte do balcão de propinas instalado no MEC pelo ex-ministro Milton Ribeiro, já preso e sob investigação da Polícia Federal. Frente à justa grita da sociedade civil, o GSI capitulou no dia seguinte e mostrou que Moura, suspeito de distribuir verbas do MEC, esteve 35 vezes no Planalto. Em 10 destas vezes, Santos esteve junto.

Na semana anterior do segundo turno, caso semelhante envolvendo a Caixa: os repórteres Eduardo Militão e Amanda Rossi, do UOL, questionaram o banco público sobre o “montante concedido em empréstimo consignado para beneficiários do Auxílio Brasil entre o primeiro e o segundo turno das eleições presidenciais. A linha de crédito é alvo de uma representação no TCU (Tribunal de Contas da União) por possível finalidade eleitoral”. A Caixa respondeu ao pedido com uma nota lacônica, distribuída a tantos outros jornalistas: “Oportunamente, a Caixa vai apresentar o balanço do Consignado Auxílio.” Entre os prazos e obrigações definidos pela lei 12.527 de 2011, que regulamenta a Lei de Acesso à Informação, não aparece a categoria “momento oportuno”. Segundo o UOL, a previsão é que os dados fossem fornecidos só depois do segundo turno. O dinheiro da Caixa é dinheiro público. Como bem define Gil Castelo Branco, da ONG Contas Abertas: “É dinheiro nosso: quem está emprestando não é a Caixa, somos nós. Uma interpretação cabível para a Caixa não estar divulgando as informações é porque acha que pode comprometer ou prejudicar essa reta final da campanha [de Bolsonaro].”

Há uma discussão muito importante sobre onde cabe o sigilo.

Fernanda: Sobre a questão de sigilo. Há muitos casos, sim, de sigilos, que são legítimos. É importante a gente observar duas coisas: primeiro, que o sigilo é exceção; segundo, que não existe sigilo eterno.

Por exemplo, questões de segurança nacional ou de agentes públicos têm prazo de validade. Informação sobre segurança de presidente, vale enquanto aquela pessoa exerce o cargo de presidente. Ou uma investigação em andamento, não pode divulgar informação porque pode prejudicar a investigação, mas essa termina e a informação tem que ser divulgada.

E também é importante dizer que é um sigilo que tem que ser proporcional. Você não pode divulgar os nomes de agentes de segurança, por exemplo, nas suas respectivas lotações para não ficarem visados, serem alvos de criminosos, mas nada impede de divulgar as folhas de pagamento daqueles agentes, encontrar uma forma de não vincular as pessoas às lotações, e assim por diante. É um princípio, de proporcionalidade.

Outro exemplo é o das licitações públicas. Você tem uma fase interna, de pesquisa de mercado, em que os prestadores de serviço não podem conhecer os preços, tem que ser guardado a sete chaves (às vezes não é), mas logo depois que passa essa fase tudo tem que ser aberto.

Tem outra categoria de informações que são os dados pessoais. Aí a gente não fala de sigilo. É uma informação que precisa ser protegida de modo geral. A lei fala em 100 anos, porque geralmente é o tempo que extrapola a vida de uma pessoa — até isso não é eterno — e é um direito dos cidadãos, ter os seus dados protegidos. O Estado só tem tantos dados do cidadão porque precisa prestar serviços, garantir saúde, educação, enfim.

E aí, esses direitos parecem colidir. É direito do cidadão saber onde e como os recursos estão sendo dados, então é importante ter transparência dos beneficiários de um programa social. Nesses casos, precisa ter uma ponderação entre o interesse público e o direito desses titulares de dados. Isso não é fácil, é uma avaliação que tem que ser feita constantemente, e um tema que temos que enfrentar cada vez mais e chegar a um equilíbrio que garanta o máximo de interesse público.

Tem métodos para isso, procedimentos, mas ainda precisamos avançar muito na nossa adminsitração pública para implementar isso de fato.

Foto panorâmica do Fórum Romano nos dias de hoje, em um dia ensolarado.
Fórum Romano hoje. Foro: Fabio Fistarol/Unsplash.

A gente já falou no Tecnocracia #24: o governo é o que a Luciana Gimenez chamaria de “ultimate data broker”. Não tem como você não repassar seus dados para ele. Exatamente por isso é que ele deveria ter muito cuidado com os seus dados. O episódio se desenvolve a partir do exemplo de um pescador no interior do Amazonas chamado Abimael. Quando o episódio foi publicado, em novembro de 2019, todos os dados do Abimael estavam disponíveis para qualquer um — nome, endereço, telefone… Alguém hackeou o Abimael? Não, era o próprio governo que estava expondo os dados. No site dados.gov.br você podia baixar os dados de Abimael e de mais centenas de pequenos produtores atrelados ao programa Selo Nacional de Agricultura Familiar (SENAF) em agosto de 2017 e janeiro, março e julho de 2018. Justiça seja feita: os dados disponíveis hoje não mais expõem dados pessoais. No caso do Abimael, o Governo fez o seu papel. Mas existe uma diferença enorme entre expôr dados desnecessários de um pescador e sufocar com diferentes subterfúgios toda a transparência de um governo. Para entender como caminha a educação e definir quais mudanças precisam ser implementadas para que a geração dos seus filhos aprendam, não precisa liberar o dia de aniversário, o endereço da casa e o tamanho da meia das crianças.

É nessa sobreposição que o governo Bolsonaro trabalhava: em nome de uma suposta defesa da “privacidade”, escondia tudo que pudesse comprometê-lo. Privacidade é fundamental, mas existem maneiras de se anonimizar dados. É um assunto delicado – durante a edição do roteiro, eu e o Ghedin entramos em um debate sobre o tema e ele deu um argumento que eu 100% subscrevo: “Há dados que não ferem a privacidade dos envolvidos se divulgados. Pelo contrário, é preferível que seja assim porque o benefício à coletividade é inestimável, por vezes fundamental.” O balanço é esse: abrir para trazer inegáveis benefícios à sociedade, como conhecer para onde estamos caminhando.

Vamos voltar às duas sociedades do início do episódio. Primeiro, os gregos: não existe democracia sem responsabilização. Sem dados, não existem evidências. Sem investigação, não existem culpados. Completa-se o ciclo da impunidade. O governo Bolsonaro praticou uma série de inovações para acabar com a transparência governamental sem o alarde que uma derrubada da LAI provocaria. Em vez de enfiar a faca, você vai desnutrindo aos poucos, deixando definhar, cercando cada vez mais.

Agora, lembremos dos romanos. Ao se ver em decadência, a sociedade romana resolveu ignorar o próprio passado e, literalmente, dá-lo às vacas. Precisou uma galera séculos depois se interessar para que o passado fosse escavado para então ser entendido. Tudo indica que esse soterramento da transparência está prestes a terminar — mudanças de governo tendem acelerar a liberação de dados enterrados. Só com um panorama honesto do que acontecia dentro do governo é possível começar a falar em investigação, responsabilização e accountability. Eu sou cuidadoso na escolha das palavras aqui já que, infelizmente, essas inovações de opacidade devem inspirar governantes pelas décadas seguintes. O fato de que o governo termina em 31 de dezembro é uma excelente notícia para a transparência. Em sua essência, a LAI permite que qualquer cidadão peça dados públicos a qualquer órgão público. Se você não sabe como fazer isso, sem problema: a Escola de Dados e o Fiquem Sabendo têm guias super mastigados dando os caminhos.

Como já nos ensinaram os italianos durante o Iluminismo, antes de analisar você precisa cavar. Está na hora de preparar as pás.

Foto do topo: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil.

  1. Qual não está?
  2. Raphael Sanzio não ouviu o episódio passado do Tecnocracia.
  3. Entendeu agora de onde vem a expressão “mármore de Carrara”?
  4. O que na vida é?
  5. Full disclosure: eu dou aula no Insper, mas não tive qualquer envolvimento com a realização e divulgação do estudo.

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